Há muito mais nos filmes de Paul Thomas
Anderson do que podemos supor ao analisarmos apenas suas superfícies. Por baixo
dos gêneros aos quais pertencem, há sempre uma inquietação, um comentário que,
de maneira frequente, diz bastante sobre o estado das coisas, a obra refletindo
a América, provando algo que já foi dito em meu texto sobre o ótimo O Lobo de Wall Street, de Scorsese: o
Sonho Americano jamais poderia ser vivido através do trabalho limpo. É uma
questão central na filmografia de Anderson, que o aproxima dos diretores da
Nova Hollywood.
Vício
Inerente,
seu novo e excelente longa-metragem, se aproveita novamente de tal temática,
aliada à própria década de ascenção e queda da Nova Hollywood, os anos 70
(época das drogas e de todos os exageros, gerados pela completa perda da
inocência e pela desilusão causada pelos últimos anos da Guerra do Vietnã), em
uma viagem investigativa que contorce o noir, gênero celebrado algumas vezes pelo movimento que revelou Scorsese e
outros (Ashby, Altman, Coppola, Friedkin).
A trama, adaptada por Anderson do romance
homônimo de Thomas Pynchon, segue Larry “Doc” Sportello (Joaquin Phoenix),
detetive particular que é incitado pela ex-namorada Shasta Fay (Katherine
Waterston) a investigar um plano para sequestrar o magnata Mickey Wolfman (Eric
Roberts), supostamente arquitetado por sua esposa. Ao mergulhar cada vez mais
fundo no desaparecimento do milionário, principalmente após Shasta também
sumir, Doc trafega, em uma espiral para baixo, por todas as camadas das esferas
sociais norte-americanas, pintando um quadro da história recente do país, das
células neonazistas à corrupção policial.
Não é a primeira vez que Paul Thomas
Anderson recorta a história com impudor. Em Jogada de Risco, o jogo e o submundo dos assassinos são microcosmo
da decadência da América. O Mestre,
de 2012, traçava outro panorama, o pseudo-religioso. Já Sangue Negro, de 2007, seu melhor filme, narrava a origem do grande
vilão do nosso sonho de um mundo melhor: as grandes corporações, personificadas
pelo protagonista de Daniel Day-Lewis, e que dessa vez se materializa na figura
de Wolfman, que construiu sua fortuna graças ao mercado imobiliário.
O que diferencia este de outros trabalhos
do cineasta, no entanto, é o tom. A subversão atua em todos os pontos de Vício Inerente, tanto dentro da narrativa,
com seu protagonista chapado e maltrapilho (uma composição brilhante de
Phoenix), que gera o humor pelo modo como vai se perdendo a cada pessoa nova
que conhece (além da lisergia, a adição de diversos personagens, mais ou menos
importantes, é outro agente que atua em prol da confusão que Doc, e o
espectador, experimentam), quanto fora dela, aplicando um noir clássico em um
contexto em que o “paz e amor” hippie já havia sido substituído pela neurose de
uma nação que presenciaria momentos conturbados como o Watergate e o direitismo
exacerbado em um futuro próximo.
É um submundo depravado o mostrado por
Anderson, que não tem medo de inserir clichês dos filmes de detetive, sempre em
escala hiperbólica (a promotora vivida por Reese Witherspoon, o policial linha
dura de Josh Brolin, o músico que trabalha como informante interpretado por
Owen Wilson), ao mesmo tempo em que cria simbologia e pistas improváveis (a
dentadura de Hope Harlingen servindo como ponte para a inserção do dentista
vivido por Martin Short), em um mundo que, concebido com atenção extrema a
detalhes, realmente convence como 1970.
Vício
Inerente,
em sua habilidade em distorcer a realidade para abordá-la, faz bom par com Boogie Nights, que o diretor comandou
em 1997. Lá, como aqui, o espalhafatoso e a desesperança do contexto histórico
serviam como pano de fundo para um protagonista que perde (ainda mais) o rumo. A
diferença é que agora o humor, que antes surgia em pitadas, é fundamental para
narrar tanto exagero. O plano que satiriza a Santa Ceia e os momentos em que Doc
contracena com o advogado Sauncho, encarnado por Benicio Del Toro, em especial na
cena em que o detetive pega na parede a foto do homem sobre quem acabou de
escutar, escancaram o absurdo da obra.
Absurdo reforçado pelo sorriso que encerra
a narrativa, e que parece dizer que no meio de tanta sujeira e corrupção,
sempre haverá espaço para o amor. Um cínico, esse Paul Thomas Anderson.
Inherent Vice, Paul Thomas Anderson, 2014
2 comments:
Achei o filme bem bom, mas de verdade? não consigo enxegar tantos subtextos assim
Um grande filme!
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