Moramos na cidade, também o presidente
E todos vão fingindo viver decentementeSó que eu não pretendo ser tão decadente não
Tédio (com um T bem
grande pra você), seminal canção da Legião Urbana, diz muita coisa sobre a juventude
do fim dos anos 70, mas muito mais sobre a própria capital federal. Erguida no
Centro-Oeste brasileiro, Brasília é o cenário perfeito para a trágica saga de
João de Santo Cristo e Maria Lúcia. Escrita em forma de canção por Renato Russo
em 1979 e enfim transformada em longa metragem pelas mãos do estreante René Sampaio,
Faroeste Caboclo se aproveita de
tudo (ou todo o pouco) que as desérticas paisagens brasilienses apresentam de
pessimismo e desilusão para narrar sua triste história de amor.
Como é comum em adaptações de outras mídias para o cinema,
algumas mudanças são feitas para garantir o funcionamento da trama e deixá-la
ainda mais cinematográfica. O roteiro, escrito por Victor Atherino e Marcos
Bernstein, conta a vida de João (vivido com garra por Fabrício Boliveira). O
início da narrativa, ambientada em Santo Cristo, tem os tons secos de Vidas Secas, o romance de Graciliano
Ramos. Após o encontro com seu soldado amarelo, o protagonista vai ao inferno
pela primeira vez. Ao sair, viaja para Brasília para recomeçar. Ao lado do
primo Pablo (César Troncoso), se envolve com a criminalidade, faz um inimigo, o
traficante Jeremias (Felipe Abib), e se apaixona por Maria Lúcia (Ísis
Valverde), a filha de um senador.
Em relação às mudanças, todas são feitas com consciência do
impacto que elas teriam na narrativa. Ora explicando pontos que ficavam na
sugestão na canção que deu origem ao longa (o que houve com a mãe de João?), ora
dando motivações reais para os personagens tomarem certas atitudes, Atherino e
Bernstein realizam um trabalho extremamente corajoso ao inclusive tomarem
certas liberdades em relação à composição de Russo (entre tais liberdades, as
prisões de João, que acontecem de forma parecida entre si, com o personagem
sendo arrancado de veículos por policiais, e o vilão interpretado por Antônio
Caloni), e ao construírem uma trama que se sustenta sobre elipses, que são muito bem resolvidas pela montagem
excepcional, e pela direção de René Sampaio.
Sampaio, aliás, é o grande destaque do projeto. Dono de uma
linguagem objetiva e clara que cai como uma luva por aqui, o cineasta trabalha
sempre em um tom de expectativa para o que virá a acontecer no terceiro ato,
apesar de insinuar já em sua cena de abertura (algo como o que Ty West fez com
o letreiro inicial de House of the Devil),
e parece amar demais os seus personagens, o que é bom. Seja com João e Maria
Lúcia, seja Jeremias, todos são filmados e humanizados com carinho pelo
diretor, que costura a vida de seus personagens e prepara terreno para o duelo
final, filmado com ares de Western
Spaghetti e que dá nome ao projeto.
Aqui, indo em direção oposta ao que a maioria espera, não
existem câmeras, os agentes da tevê não se apresentam, mas seu herói negro ainda
é santo por saber morrer. René Sampaio e seus roteiristas entendem que transformar
a Via Crúcis em circo faria do destino de João de Santo Cristo e Maria Lúcia
“A”, ao invés de “uma” tragédia brasileira, e não respeitaria a paixão que os
protagonistas nutrem um pelo outro até a morte. Seguindo essa lógica, aproximar
o espectador do casal e de suas mãos dadas ao fim parece ser a decisão correta.
Nada mais respeitoso, e emocionante.
Faroeste Caboclo, René Sampaio, 2013
½

2 comments:
Grande texto e grande filme.
as mudanças são tomadas com consciência e fazem todo sentido na trama
Filme muito bom! E é mais um filme nacional que me conquista.
E fazendo minhas as palavras do João: "grande texto".
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