Sunday, June 09, 2013

Faroeste Caboclo


Moramos na cidade, também o presidente
E todos vão fingindo viver decentemente
Só que eu não pretendo ser tão decadente não             

Tédio (com um T bem grande pra você), seminal canção da Legião Urbana, diz muita coisa sobre a juventude do fim dos anos 70, mas muito mais sobre a própria capital federal. Erguida no Centro-Oeste brasileiro, Brasília é o cenário perfeito para a trágica saga de João de Santo Cristo e Maria Lúcia. Escrita em forma de canção por Renato Russo em 1979 e enfim transformada em longa metragem pelas mãos do estreante René Sampaio, Faroeste Caboclo se aproveita de tudo (ou todo o pouco) que as desérticas paisagens brasilienses apresentam de pessimismo e desilusão para narrar sua triste história de amor.

Como é comum em adaptações de outras mídias para o cinema, algumas mudanças são feitas para garantir o funcionamento da trama e deixá-la ainda mais cinematográfica. O roteiro, escrito por Victor Atherino e Marcos Bernstein, conta a vida de João (vivido com garra por Fabrício Boliveira). O início da narrativa, ambientada em Santo Cristo, tem os tons secos de Vidas Secas, o romance de Graciliano Ramos. Após o encontro com seu soldado amarelo, o protagonista vai ao inferno pela primeira vez. Ao sair, viaja para Brasília para recomeçar. Ao lado do primo Pablo (César Troncoso), se envolve com a criminalidade, faz um inimigo, o traficante Jeremias (Felipe Abib), e se apaixona por Maria Lúcia (Ísis Valverde), a filha de um senador.

Em relação às mudanças, todas são feitas com consciência do impacto que elas teriam na narrativa. Ora explicando pontos que ficavam na sugestão na canção que deu origem ao longa (o que houve com a mãe de João?), ora dando motivações reais para os personagens tomarem certas atitudes, Atherino e Bernstein realizam um trabalho extremamente corajoso ao inclusive tomarem certas liberdades em relação à composição de Russo (entre tais liberdades, as prisões de João, que acontecem de forma parecida entre si, com o personagem sendo arrancado de veículos por policiais, e o vilão interpretado por Antônio Caloni), e ao construírem uma trama que se sustenta sobre elipses,  que são muito bem resolvidas pela montagem excepcional, e pela direção de René Sampaio.

Sampaio, aliás, é o grande destaque do projeto. Dono de uma linguagem objetiva e clara que cai como uma luva por aqui, o cineasta trabalha sempre em um tom de expectativa para o que virá a acontecer no terceiro ato, apesar de insinuar já em sua cena de abertura (algo como o que Ty West fez com o letreiro inicial de House of the Devil), e parece amar demais os seus personagens, o que é bom. Seja com João e Maria Lúcia, seja Jeremias, todos são filmados e humanizados com carinho pelo diretor, que costura a vida de seus personagens e prepara terreno para o duelo final, filmado com ares de Western Spaghetti e que dá nome ao projeto.

Aqui, indo em direção oposta ao que a maioria espera, não existem câmeras, os agentes da tevê não se apresentam, mas seu herói negro ainda é santo por saber morrer. René Sampaio e seus roteiristas entendem que transformar a Via Crúcis em circo faria do destino de João de Santo Cristo e Maria Lúcia “A”, ao invés de “uma” tragédia brasileira, e não respeitaria a paixão que os protagonistas nutrem um pelo outro até a morte. Seguindo essa lógica, aproximar o espectador do casal e de suas mãos dadas ao fim parece ser a decisão correta. Nada mais respeitoso, e emocionante.

Faroeste Caboclo, René Sampaio, 2013 ½

2 comments:

João said...

Grande texto e grande filme.

as mudanças são tomadas com consciência e fazem todo sentido na trama

Raquel Raposo said...

Filme muito bom! E é mais um filme nacional que me conquista.
E fazendo minhas as palavras do João: "grande texto".