Sunday, August 10, 2014

Divergente

Divergente segue uma linha promissora dos blockbusters recentes, como a ótima franquia Jogos Vorazes e o fraco Ender’s Game: O Jogo do Exterminador: em comum, os três filmes possuem o fato de serem adaptações de fenômenos literários juvenis (Ender’s Game foi lançado nos anos 80; os outros dois são sucessos recentes) que, se aproveitando da ficção científica, mostram os clássicos problemas da puberdade, embalados em uma ambientação distópica que coloca os adolescentes como centros narrativos e esperança de um futuro melhor.

Estabelecidos contexto e história, então, é preciso tomar cuidado para que um não se dilua no outro. O filme de Neil Burger tem ótimas intenções, em suas críticas sócio-políticas e em como parece querer mergulhar no sci-fi com vontade, apesar de não esconder sua alma teen (frases como “Todos sabem os seus lugares, exceto eu” tem aquele tom de rebeldia calculado para atingir em cheio os mais jovens). É decepcionante, no entanto, ver como o peso dramático dos personagens diminui a partir do momento em que o romance toma a maior parte das cenas e passa a ditar o rumo da narrativa, ao passo que a consciência política, que merecia destaque, fica em segundo plano.

A trama, escrita por Evan Daugherty e Vanessa Taylor, acompanha uma Chicago futurista que se recuperou de uma guerra de consequências terríveis e remontou a sua sociedade ao restringir o ir e vir de seus cidadãos e separá-los em cinco facções, de acordo com os traços mais marcantes das pessoas: Abnegation são os altruístas, Erudites são os cultos, Candor abriga os honestos, Dauntless os audaciosos e Amity os antibelicistas, os pacíficos. Cada habitante precisa escolher qual caminho seguir ao completar 16 anos, independente da facção dos pais.

Beatrice Prior (Shailene Woodley) vive um dilema na hora de escolher, pois seu teste apontou uma inconsistência rara, e resultou em aptidão para diferentes facções. As pessoas que carregam essa característica são chamadas de Divergentes e, devido a essa vantagem (que escancara a liberdade para elas), são vistas como uma ameaça pelo totalitarismo dos Erudites, que se preparam para se levantarem contra o governo liderado pela Abnegation, casta da qual a família de Beatrice faz parte.

O cenário, adaptado das páginas de Veronica Roth, é bem transposto. Burger consegue transmitir um tom de falsa paz e hipocrisia (valorizados pelas cercas que ladeiam mundo civilizado e pela presença dos moradores de rua, os “sem facção”, mal vistos por todos, mocinhos ou bandidos) que é essencial para o sucesso de um longa passado em uma distopia. O problema é o tom de rito de passagem, de filme high school que fatalmente toma conta de Divergente quando o texto demonstra pouca habilidade para trabalhar seus personagens. Por baixo da máscara de inteligência as facções nada mais são do que metáforas para os estereótipos de filmes escolares (os nerds, os atletas, aquele pessoal que toca violão à sombra de uma árvore, etc.) quando deveriam servir para algo mais.

Agora chamada Tris (a mudança de nome é possível após decidir sua facção), a protagonista tem certa consciência da seriedade que envolve sua decisão e o risco que corre de se colocar em rota de colisão com todo o jogo político do momento. Por isso, ela começa a investigar por conta própria, conversa com a mãe, procura pelo irmão, tem ao menos dois curtos, mas intrigantes, diálogos com Jeanine (Kate Winslet). Só que, talvez por ser jovem (o que nunca é desculpa em Jogos Vorazes, mas vá lá), ela acaba esquecendo tudo isso quando se apaixona pelo valentão da escola, o capitão do time, o cara cheio de segredos. Mais previsível impossível.

Essa inabilidade para desenvolver personagens faz de Divergente um filme que, enquanto filme de ação e metáfora política, carece de um senso de urgência mais do que necessário, o que fica evidente quando se percebe que faltou também atenção a detalhes que, se não ajeitariam as coisas se estivessem presentes, prejudicam pela ausência, como, por exemplo, o fato de no grupo dos Dauntless não existirem homens ou mulheres mais velhos (o que os transforma em adolescentes rebeldes que fugiram de casa ou, pior, matadores de velhos). Ou a aparência do pessoal da Abnegation: são todos muito bonitos. Assim fica muito fácil bancar o humilde e “rejeitar” a vaidade (ideologia representada no longa pela infantil decisão de simplesmente não se olhar no espelho).

Desta forma, pouco urgente e mal desenvolvida, a obra acaba soando falsa justamente no terceiro ato, quando precisa convencer. A missão quase suicida na qual os heróis se lançam no final tem cara de treinamento, e empolga menos do que o jogo de caça-bandeira praticado pelos personagens em outro momento. Fica quase impossível não comparar o longa com Ender’s Game, que era uma decepção gigante justamente por se concentrar demais em simulações, e funcionar melhor durante os treinamentos do que em sua reta final.

A questão é que, mesmo se posto lado a lado com aquela irregular ficção dirigida por Gavin Hood, o filme de Burger sai perdendo. Em O Jogo do Exterminador, pelo menos, os acontecimentos que se abatem sobre Ender o abalam, o amadurecem, e o protagonista tenta sua cartada final para tentar ganhar o espectador. Já o encerramento de Divergente, com sua tarde ensolarada, seus flares e o trem em direção ao desconhecido, tudo na linha do “pelo menos temos um ao outro”, delineia uma espécie de final feliz, mesmo que essa seja uma felicidade temporária. E que faz pouca justiça às vidas que se perderam, e que deveriam mudar os personagens para sempre.

Divergent, Neil Burger, 2014 

2 comments:

joão said...

otimo texto. mas adoro o filme. o quanto a pelo menso temos um ao outro não senti cara de final felz, mas sim de algo pra se apegar depois de tantas perdas.

a parte do nao ter idosos é uma pergunta interessante também.

na verdade filmes assim se pararmos pra pensar tem várias coisas pouco claras(jogos vorazes também)

Raquel Raposo said...

Ótimo texto e gostei do filme, mas concordo na parte de que tudo ficou chatinho quando o foco passou a ser o romance dos dois.