Sunday, January 17, 2016

Os Oito Odiados

Apesar de praticamente homogênea em qualidade, a filmografia de Quentin Tarantino pode ser dividida em dois momentos: enquanto seus trabalhos até 2007 homenageavam os gêneros, sempre através da subversão dos mesmos, que ajudaram a moldar a sua cinefilia (filmes de assalto, filmes de máfia, filmes de artes marciais, os cinemas Grindhouse), sua obra a partir de 2009 passou, em temática e grandiloquência, a abordar a História do ponto de vista do Cinema, no qual a Sétima Arte reescrevia páginas negras dos últimos séculos (a Segunda Guerra, a escravidão).

Nesse contexto, Os Oito Odiados habita um limbo interessante na filmografia de Tarantino, um meio termo entre o estilo subversivo de seus primeiros filmes e o caráter revisionista dos mais recentes. Ao iniciar a projeção com créditos escritos em fonte que se assemelha à de Pulp Fiction, mas sob a trilha de Enio Morricone, Tarantino dá toda a impressão de que este será uma análise de gênero, no caso o western, e as tomadas iniciais sugerem um grandioso faroeste na neve, no qual uma diligência precisa viajar por um inverno rigoroso. A subversão começa quando o diretor abre mão da grandiosidade para construir um filme de câmara, nos moldes de Cães de Aluguel.

A trama começa acompanhando John Ruth (Kurt Russell), caçador de recompensas que viaja levando uma mulher, Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh), para ser executada na cidade de Red Rock. No caminho, eles encontram outro caçador de recompensas, o Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson), veterano da Guerra Civil, e Chris Mannix, que também esteve envolvido no conflito, mas pelo lado dos Confederados. Pegos por uma nevasca, eles acabam se alojando em uma pensão, chefiada por Minnie, conhecida de Warren, e que não se encontra no local. Dentro do estabelecimento, os três homens mais a prisioneira e o cocheiro, O.B. (James Parks), acabam na companhia do carrasco Oswaldo Mobray (Tim Roth), do fazendeiro Joe Gage (Michael Madsen), do veterano confederado Sandy Smithers (Bruce Dern) e do Mexicano Bob (Demián Bichir), que toma conta do local na ausência de Minnie.

Não demora muito para que a tensão entre essas pessoas atinja pontos insuportáveis, que levarão ao conflito, como nos mais clássicos filmes de câmara, e ao “impasse mexicano”, reviravolta já marcada da obra de Tarantino. E são exatamente as intenções de seu diretor com o tal impasse que fazem deste um filme que parece um amálgama de Cães de Aluguel (1992) com Django Livre (2013). Em comum, todos os filmes do cineasta compartilham uma visão de mundo na qual a violência serve como catalisador. O sangue potencializa as discussões de seus trabalhos. Não seria diferente em uma narrativa que confina tipos determinantes na formação da América enquanto Sociedade, enquanto Nação.

Pois Os Oito Odiados, em seu caráter de microcosmo, nada mais é do que uma metáfora da construção dos Estados Unidos, em que seus tipos, do mexicano ao inglês, passando pelo negro e pelo fazendeiro que enriqueceu em um golpe de sorte, moldam um lugar saudado como a Terra das Oportunidades, mas que forjou em sangue sua supremacia. Este provavelmente é o mais violento trabalho de Tarantino, em que a brutalidade problematiza a truculência de um país desenhado à força. Sob esta ótica, o western, o mais americano dos gêneros, que muitas vezes glorificou o heroísmo branco na expansão para o Oeste, na dizimação de nativos, e no sul, marginalizando o latino, é o pano de fundo perfeito para o registro.

Registro revestido de ironia, não só na inexplicável narração em off a partir do quarto capítulo, “Domergue tem um segredo”, e no desenho exagerado das personagens, compostos (do olho roxo de Daisy aos figurinos desenhados por Courtney Hoffman) com cuidado entre o caricato e o fidedigno, quanto na decisão do texto de colocar a figura de Marquis como centro narrativo. Portando uma carta de Lincoln e assumindo posição de liderança nas discussões que ocorrem, é a personagem de Samuel L. Jackson – o ator que melhor entende e recita os diálogos escritos por Tarantino – que encabeça a ação de um longa pertencente a um gênero que sempre foi de uma brancura inabalável.

The Hateful Eight, Quentin Tarantino, 2015 

1 comment:

Raquel Raposo said...

Me lembrou bastante Cães de Aluguel tbm. O que mais gostei foi que, tudo acontecia num lugar só, e quando ele ia desenvolver uma trama, os outros personagens ficavam quietinhos. Achei engraçadinho.