Com
dez anos de vida e bilhões de dólares arrecadados em bilheteria, o Marvel
Studios vive sua Era de Ouro. Todos os seus filmes se transformam em sucessos
gigantescos, e a cada novo lançamento o estúdio estabelece mais um nome de peso
em seu coerente universo cinematográfico compartilhado. Todo esse poder deu à Marvel a chance de
experimentar, através da introdução de personagens menores que, apesar de
conhecidos pelos fãs de quadrinhos, não tinham apelo entre a maior parte do
público que frequenta os cinemas. Agora, parecia o momento perfeito para mais
uma evolução: um amadurecimento no discurso, em um filme que posicionasse a marca
na vanguarda dos blockbusters em matéria de utilização dos recursos
cinematográficos. Doutor Estranho,
de Scott Derrickson, tinha tudo para ser esse passo adiante, mas o quanto a
Marvel estava disposta a arriscar?
A
trama, escrita por Derrickson, Jon Spaihts e C. Robert Cargill, acompanha o
doutor Stephen Strange (Benedict Cumberbatch, em ótima caracterização).
Neurocirurgião habilidoso, ele é um poço de arrogância, e escolhe pacientes a
partir da dificuldade dos casos e do tamanho do desafio. Salvar vidas está em
segundo plano. Numa dessas viradas que a vida dá e o Cinema retrata, o médico
sofre um acidente automobilístico gravíssimo que lhe custa a carreira: com as
mãos permanentemente danificadas, ele jamais poderá operar alguém de novo. Após
gastar toda sua fortuna em tratamentos e praticamente perder as esperanças,
Stephen fica sabendo de um tratamento alternativo no Nepal que poderia lhe
devolver os movimentos seguros das mãos.
Lá,
o doutor conhece um grupo de guardiões que parecem uma mistura de monges e
mestres de kung fu e tem contato com uma expansão do mundo material, um plano
cósmico, místico, que ele reluta em aceitar. Acontece que os tais guardiões
(Chiwetel Ejiofor, Benedict Wong), liderados pela Anciã (Tilda Swinton,
engolindo a todos em cena), são responsáveis pela proteção da Terra contra a
Dimensão das Trevas, de seres místicos dominados pelo poderoso Dormammu, e que
tem em Kaecelius (Mads Mikkelsen) um aliado.
A
jornada de Strange, de ser arrogante a Mago Supremo, não é diferente das vistas
em Homem de Ferro (Jon Favreau,
2008) ou Thor (Kenneth Branagh,
2011). A grande novidade em Doutor
Estranho, que refresca a aventura em relação ao Universo Cinematográfico
Marvel, é o seu visual. Por ser a primeira incursão da franquia de super-heróis
no universo místico da editora/estúdio, toda a roupagem é nova, da fotografia
de Ben Davis, que confere certa sobriedade aos figurinos chamativos de
Alexandra Byrne, à trilha sonora de Michael Giacchino. Entretanto, apesar de os
cenários serem bem estabelecidos, do mundo materialista de Strange (o hospital
e o apartamento, em suas paletas frias) aos ambientes nepaleses que servem de lar
para a Anciã e seus liderados, é no plano místico que o design de produção de
Charles Wood brilha, apoiado pelos impressionantes efeitos visuais da
Industrial Light & Magic.
Dentro
dessa aposta no fantástico, um momento é especial: a sequência em que Strange
confronta toda a imensidão de planos e dimensões com as quais a Anciã e seus
discípulos lidam é o grande destaque de Doutor
Estranho. Aliás, mais do que isso, o misto de maravilhamento e pavor do
protagonista perante a vastidão de um mundo de cuja existência ele não fazia
ideia está entre o conjunto de cenas mais marcantes da temporada, em uma
mistura de texturas e cores deslumbrantes. Influenciado claramente por 2001: uma Odisseia no Espaço, mas
contando com todo o poder dos efeitos visuais atuais, Scott Derrickson toma
decisão exemplar em não construir essa viagem psicodélica de Stephen com uma
série de cortes rápidos, preferindo segurar seus planos por um segundo a mais,
para que o espectador contemple o que está acontecendo, no melhor 3D que um
filme de super-heróis já teve. É impactante como as psicodélicas páginas escritas
por Stan Lee e desenhadas pelo gênio Steve Ditko na década de 1960, quando os
quadrinhos do Mago Supremo conquistaram os EUA e levaram a Marvel a públicos mais
adultos.
Infelizmente,
a identidade visual (as sequências de ação são megalomaníacas, criativas e
jamais soam repetitivas, com novos adicionais a cada novo combate) é umas das
únicas apostas arrojadas de Doutor
Estranho. Na maior parte do tempo, no entanto, o longa é mais um comportado
filme de origem dos personagens Marvel. É decepcionante como um personagem de
habilidades tão distintas, com conhecimento tão profundo das artes místicas,
possa ter estrelado um longa tão quadrado, com o excesso de explicações (dos
poderes aos objetos, praticamente tudo precisa ser explicado minuciosamente, à
vezes mais de uma vez, como no caso da Dimensão Espelhada) e os arcos
acontecendo sem a criatividade (por exemplo, a médica Christine Palmer, vivida
por Rachel McAdams, e o Dr. West de Michael Stuhlbarg, interesse amoroso e
rival profissional, respectivamente, e alavancas na redenção do protagonista)
ou a subversão que sempre marcaram o personagem nas HQs.
Outro
problema claro do longa é o tratamento dispensado ao vilão. Kaecelius jamais
tem as suas motivações ou seu passado e relação com a Anciã devidamente
investigados, e sua maldade parece gratuita. Uma das maiores carências dos
filmes Marvel é a presença de bons vilões (o ótimo Loki de Tom Hiddleston é uma
exceção), e aqui não é diferente. Além disso, o roteiro comete o pecado de
reduzir o personagem a mero capanga no terceiro ato (no qual Scott Derrickson
exercita sua veia de diretor de filmes de horror), e o seu destino é decidido
de forma que o enfraquece ainda mais dentro da narrativa.
É
sabido que a Marvel não busca reproduzir histórias clássicas com precisão
quando transpõe seus personagens para as telas. Afinal, a franquia precisa se
ajustar ao Século XXI e aos heróis sobre os quais a Marvel Studios tem o
controle (X-Men e Quarteto Fantástico, por exemplo, não podem ser utilizados
nos filmes do estúdio, por pertencerem à Fox). A fidelidade almejada, portanto,
diz muito mais respeito aos personagens e ao tom das aventuras, que tem o
equilíbrio entre o retrato das melhores páginas de seus quadrinhos e a leveza
que torne suas adaptações palatáveis para todos os públicos. É nessa busca por
equilíbrio que Doutor Estranho acaba
pecando por não conseguir lançar mão do humor com propriedade. São raros os
momentos em que os alívios cômicos funcionam, o que configura um problema em um
filme que os utiliza a todo tempo.
Este
é um produto curioso. Ao mesmo tempo em que é inventivo e bonito em sua
embalagem, com sua psicodelia que reverencia as primeiras histórias do herói e
seus combates sempre criativamente coreografados, é também uma das adaptações
de HQs mais quadradas dos últimos tempos. Serve a um propósito nobre, que é
levar o universo místico da editora aos cinemas, mas falha em ser um longa que
tenha em seu cerne a subversão e a novidade pelos quais Stephen Strange ficou
conhecido através das décadas. No fim das contas, para uma obra que leva a
excentricidade até no nome, Doutor
Estranho é um filme dos mais caretas.
Doctor Strange,
Scott Derrickson, 2016
1 comment:
Gostei do filme mas concordo com o mau desenvolvimento do vilão. Ele tinha um visual todo bonito, poderiam ter trabalhado melhor a história dele.
Post a Comment