Wednesday, September 07, 2016

Aquarius

Em vários momentos de Aquarius, o espectador encontra os personagens saudosistas, discutindo memórias ou conversando sobre fotos antigas. Em seu segundo filme, Kleber Mendonça Filho demonstra coerência ao – assim como em O Som ao Redor, sua estreia na ficção – se debruçar novamente sobre o valor das memórias. O diretor vem criando uma obra admirável, em qualidade e coesão, em trabalhos que tomam o passado como ponto de partida para estudar o estado das coisas no presente. A diferença entre os dois longas do cineasta, no entanto, é o ponto de vista: se seu debute fora dos curtas e documentários era uma reflexão sobre o desconforto, sobre aquele momento que antecede algo trágico, dessa vez Kleber faz de seu filme uma peça não de ruptura, como seu trabalho anterior, mas de resistência.

Clara (Sônia Braga), a protagonista, é exemplo dessa resistência. Venceu um câncer no fim dos anos 70 e lutou ao lado do marido para construir um patrimônio. Amante da música, diz que aceita as mídias digitais, mas ainda hoje ostenta e ouve sua coleção de LPs, que ela afirma terem mais história. Ela é também a última moradora do Edifício Aquarius, na praia de Boa Viagem. Sua luta contra os planos da construtora que comprou todos os outros apartamentos vizinhos e tem planos de construir um complexo moderno no lugar do Aquarius é o que move a trama, neste filme que trata de como a renovação nem sempre (ou quase nunca) se importa com o velho que sai de cena para que o novo floresça.

Existe uma lógica ideológica nas atitudes da protagonista e nas suas relações com outros personagens. Sua batalha contra a elitização de seu edifício é também uma batalha pela preservação de seu passado, do apartamento onde amou seu marido e onde criou seus filhos. Isso tudo dá a Aquarius um ar de filme político. Muito mais do que a manifestação anti impeachment feita em Cannes por diretor e elenco, é o conteúdo do longa de Kleber Mendonça Filho que deve preocupar e atingir os mais privilegiados pelo sistema sócio-político do Brasil. O comportamento de Clara a aproxima de atos reais como o Ocupe Estelita, um movimento contra a ação de empreiteiras no porto do Recife. O que o roteiro do próprio Kleber deixa claro é que o desenvolvimento capitalista é, em sua essência, antidemocrático.

A grande jogada do diretor, que une todo o cenário político brasileiro atual ao microcosmo do edifício no qual a trama se concentra, é o modo como ele trata os personagens. Da amizade de Clara com o salva-vidas Roberval (Irandhir Santos) e o sobrinho Tomás (Pedro Queiroz), passando por Ana Paula, a filha de Clara vivida por Maeve Jinkings, tudo em Aquarius funciona de modo a casar ideologia política e comentário social. A cena em que Clara conversa com um velho amigo jornalista em um restaurante é um exemplo perfeito de como o Brasil não consegue se desvencilhar da corrupção, política e pessoal, familiar. Até mesmo o jovem engenheiro Diego (Humberto Carrão), que antropomorfiza a especulação imobiliária e é o mais próximo que se tem de um vilão na trama, está ali por um motivo, para deixar claro o valor de se preservar as memórias, em fotos, estruturas de pedra ou pessoas que as carreguem.

A direção de Kleber tem um pouco de cada estágio de sua vida profissional. Fica evidente em seu estilo a influência do cinema político. É possível fácil ver traços de diretores que fizeram ou fazem de suas filmografias retratos de seus países. Os primeiros nomes que vêm à cabeça são Costa-Gravas, Ken Loach e o pessoal da Nova Hollywood, mas o passado de Kleber Mendonça Filho como crítico pode tê-lo aproximado de Brillante Mendoza, Jafar Panahi e Joshua Oppenheimer. Aquarius soa universal em sua politização, ao mesmo tempo em que é brasileiríssimo na estética, fazendo par com o cinema brasileiro dos anos 2000, que pintou quadros sociais em filmes como Cinema, Aspirina e Urubus (Marcelo Gomes, 2005), O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006) e Que Horas Elas Volta? (Anna Muylaert, 2015), e mitificando Sônia Braga como a melhor heroína possível em um filme como esse.

Ela não está em cena desde o início (a história se inicia em 1980, e a protagonista é vivida por Barbara Colen em sua versão mais jovem), mas domina todo o resto do filme a partir do momento em que aparece. Sua atuação, que compõe uma mulher contida que cuida muito bem de suas memórias e aprecia cultivar outras (é lindo o momento em que ela vai de discutir fotos antigas com o irmão a observar a namorada do sobrinho com o mesmo sorriso apaixonado), explode nas cenas em que ela perde o controle, em especial nos confrontos verbais com Diego. “Eu prefiro dar um câncer do que ter outro”, ela diz em certo ponto. Aquarius é o segundo filme de Kleber Mendonça Filho, e ganha contornos de segunda obra-prima graças a Sônia. Uma mistura de velhinha com criança, a “doida” do edifício, tão intensa quanto as canções de Maria Bethânia.

Aquarius, Kleber Mendonça Filho, 2016 

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