Em
vários momentos de Aquarius, o
espectador encontra os personagens saudosistas, discutindo memórias ou
conversando sobre fotos antigas. Em seu segundo filme, Kleber Mendonça Filho
demonstra coerência ao – assim como em O
Som ao Redor, sua estreia na ficção – se debruçar novamente sobre o valor das
memórias. O diretor vem criando uma obra admirável, em qualidade e coesão, em
trabalhos que tomam o passado como ponto de partida para estudar o estado das
coisas no presente. A diferença entre os dois longas do cineasta, no entanto, é
o ponto de vista: se seu debute fora dos curtas e documentários era uma reflexão sobre o desconforto, sobre aquele
momento que antecede algo trágico, dessa vez Kleber faz de seu filme uma peça
não de ruptura, como seu trabalho anterior, mas de resistência.
Clara
(Sônia Braga), a protagonista, é exemplo dessa resistência. Venceu um câncer no
fim dos anos 70 e lutou ao lado do marido para construir um patrimônio. Amante
da música, diz que aceita as mídias digitais, mas ainda hoje ostenta e ouve sua
coleção de LPs, que ela afirma terem mais história. Ela é também a última
moradora do Edifício Aquarius, na praia de Boa Viagem. Sua luta contra os
planos da construtora que comprou todos os outros apartamentos vizinhos e tem
planos de construir um complexo moderno no lugar do Aquarius é o que move a
trama, neste filme que trata de como a renovação nem sempre (ou quase nunca) se
importa com o velho que sai de cena para que o novo floresça.
Existe
uma lógica ideológica nas atitudes da protagonista e nas suas relações com
outros personagens. Sua batalha contra a elitização de seu edifício é também
uma batalha pela preservação de seu passado, do apartamento onde amou seu
marido e onde criou seus filhos. Isso tudo dá a Aquarius um ar de filme político. Muito mais do que a manifestação anti
impeachment feita em Cannes por diretor e elenco, é o conteúdo do longa de
Kleber Mendonça Filho que deve preocupar e atingir os mais privilegiados pelo sistema
sócio-político do Brasil. O comportamento de Clara a aproxima de atos
reais como o Ocupe Estelita, um movimento contra a ação de empreiteiras no
porto do Recife. O que o roteiro do próprio Kleber deixa claro é que o
desenvolvimento capitalista é, em sua essência, antidemocrático.
A
grande jogada do diretor, que une todo o cenário político brasileiro atual ao
microcosmo do edifício no qual a trama se concentra, é o modo como ele trata os
personagens. Da amizade de Clara com o salva-vidas Roberval (Irandhir Santos) e
o sobrinho Tomás (Pedro Queiroz), passando por Ana Paula, a filha de Clara
vivida por Maeve Jinkings, tudo em Aquarius funciona de modo a casar ideologia
política e comentário social. A cena em que Clara conversa com um velho amigo
jornalista em um restaurante é um exemplo perfeito de como o Brasil não
consegue se desvencilhar da corrupção, política e pessoal, familiar. Até mesmo o
jovem engenheiro Diego (Humberto Carrão), que antropomorfiza a especulação
imobiliária e é o mais próximo que se tem de um vilão na trama, está ali por um
motivo, para deixar claro o valor de se preservar as memórias, em fotos,
estruturas de pedra ou pessoas que as carreguem.
A
direção de Kleber tem um pouco de cada estágio de sua vida profissional. Fica
evidente em seu estilo a influência do cinema político. É possível fácil ver traços
de diretores que fizeram ou fazem de suas filmografias retratos de seus países.
Os primeiros nomes que vêm à cabeça são Costa-Gravas, Ken Loach e o pessoal da
Nova Hollywood, mas o passado de Kleber Mendonça Filho como crítico pode tê-lo aproximado
de Brillante Mendoza, Jafar Panahi e Joshua Oppenheimer. Aquarius soa universal em sua politização, ao mesmo tempo em que é
brasileiríssimo na estética, fazendo par com o cinema brasileiro dos anos 2000,
que pintou quadros sociais em filmes como Cinema,
Aspirina e Urubus (Marcelo Gomes, 2005), O Céu de Suely (Karim Aïnouz, 2006) e Que Horas Elas Volta? (Anna Muylaert, 2015), e mitificando Sônia
Braga como a melhor heroína possível em um filme como esse.
Ela
não está em cena desde o início (a história se inicia em 1980, e a protagonista
é vivida por Barbara Colen em sua versão mais jovem), mas domina todo o resto
do filme a partir do momento em que aparece. Sua atuação, que compõe uma mulher
contida que cuida muito bem de suas memórias e aprecia cultivar outras (é lindo
o momento em que ela vai de discutir fotos antigas com o irmão a observar a
namorada do sobrinho com o mesmo sorriso apaixonado), explode nas cenas em que
ela perde o controle, em especial nos confrontos verbais com Diego. “Eu prefiro
dar um câncer do que ter outro”, ela diz em certo ponto. Aquarius é o segundo filme de Kleber Mendonça Filho, e ganha contornos
de segunda obra-prima graças a Sônia. Uma mistura de velhinha com criança, a “doida”
do edifício, tão intensa quanto as canções de Maria Bethânia.
Aquarius,
Kleber Mendonça Filho, 2016
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