O
cinema de Quentin Tarantino existe em um universo próprio. As tramas de sua
filmografia coexistem no que é uma espécie de realidade alternativa do mundo em
que vivemos. Uma das características mais marcantes em sua filmografia são essa
coerência e as conexões, às vezes sutis, entre filmes diferentes (Vic, de Cães de Aluguel, e Vincent, de Pulp Fiction, mafiosos que compartilham
o mesmo sobrenome, Vega; o xerife que analisa a chacina de El Paso em Kill Bill e reaparece em À Prova de Morte). Essa coesão
artística é parte do que faz cada filme seu um acontecimento.
Outra
de suas marcas é o talento genuíno para ir do humor ao completo estado de
tensão em sequencias que têm início a partir de conversas banais. Existe, em
seus textos, sempre uma preocupação em situar os personagens no local onde
habitam e convivem, e por isso eles falam de diversos assuntos que não fazem
parte da trama principal. Discutem sobre música pop e fast food, contam piadas,
reclamam do desconforto que acessórios de vestimenta como máscaras e afins
causam, tudo isso para que os longas explodam em uma violência absurda no
momento seguinte.
Mas
não é só isso: nos últimos anos, Tarantino (que está perto de completar 50
anos) resolveu filmar algo além de sua profunda paixão pelo Cinema, a sua
profunda crença no poder do mesmo, e passou a utilizar as telas para reescrever
a História. Em Bastardos Inglórios,
de 2009, Hitler é morto por Judeus em um cinema. Já em Django Livre, sua nova empreitada, o cruel e escravagista sul dos
Estados Unidos vê um negro ser libertado e se tornar um caçador de recompensas,
matando brancos por dinheiro.
A
sequencia que inicia o filme já abre o jogo e conta o tema que irá permear toda
a projeção: uma fileira de escravos acorrentados vê seus mercadores serem
parados por um alemão, Dr. King Schultz (Christoph Waltz). Logo descobrimos que
Schultz (esse último nome, cuja pronúncia lembra “shoots”, verbo na terceira
pessoa do inglês que faz referência ao mesmo tempo a “atirar” e “filmar”, não é
coincidência) é um caçador de recompensas que está atrás de um escravo que
saiba o paradeiro de três fugitivos. Quando Django (Jamie Foxx) revela conhecer
os homens, Schultz o liberta e começa com ele uma parceria e um acordo: eles
trabalhariam juntos como caçadores de recompensas no inverno, e quando o gelo
derretesse eles iriam ao Mississipi resgatar a esposa de Django, Broomhilda
(Kerry Washington), que está sofrendo o diabo nas mãos de Calvin Candie
(Leonardo DiCaprio), um poderoso senhor de escravos.
O
diretor nos entrega aqui alguns detalhes que são dignos de antologia, pela
singeleza e eficácia em que se apresentam (as gigantescas letras brancas que
levam a narrativa para o Mississipi e o plano que mostra Jamie Foxx enfocado pela
abertura do nó de uma forca estão entre os melhores que o cineasta já
concebeu). No texto, por se tratar de um filme ambientado dois anos da Guerra
Civil Americana, as referências pop se diluem, mas em contrapartida o humor
negro aumenta. A violência acontece em toneladas e, com exceção de uma cena
envolvendo cães, sem chocar, por estar inserida em uma ambientação gráfica na
qual a realidade mostrada é mais uma caricatura e um comentário do que um
retrato da realidade vivida.
Por
falar na representação da realidade, o elenco por sua vez entende o projeto, e
entrega atuações que, caricaturais, beiram a canastrice dos melhores
personagens escritos por Tarantino. Em matéria de personagens, Django Livre é
quase um Greatest Hits de
personalidades, e entre as grandes atuações a composição de Leonardo DiCaprio é
o melhor exemplo, em sua amálgama de Vic Vega, Stuntman Mike (À Prova de Morte) e Hans Landa (Bastardos Inglórios).
Por
outro lado, apesar de tantos pontos positivos, o longa parece sempre ficar um
degrau abaixo de longas como Kill Bill
e Pulp Fiction, e a sua duração
influencia no resultado. O filme parece diminuir o ritmo em alguns momentos (o
fim do segundo ato parece se arrastar) entre as quase três horas de projeção.
Uns dez minutos a menos fariam muito bem.
Mas
qualquer deslize é facilmente esquecido nos minutos finais, quando Django Livre volta aos trilhos e retoma
o caminho da vitória, em uma série de cenas em sequencia que remontam os Western Spaghetti ao mesmo tempo em que
se adequam com perfeição a essa nova fase do diretor, inclusive apostando em
rimas visuais que fazem o espectador mais atento se lembrar de projetos
passados do cineasta. Assim como em Bastardos,
o fogo vem para lavar e levar a maldade embora. Como já foi dito, Tarantino acredita
no poder do cinema e o utiliza para reescrever as páginas mais negras dos
livros de História e mudar o curso dos fatos. Devido a isso, seus dois últimos
filmes são se não os melhores (no caso de Django
Livre, longe disso, na verdade), seus trabalhos mais importantes.
Django Unchained, Quentin Tarantino, 2012 

2 comments:
Não chega a ser excelente como Bastardos(meu preferido!! *-*), mas é muito bom!!
ótimo texto, com direito ao final de Bastardos revelado. Não gostei da enorme legenda branca e acho tão bom quanto Bastardo e Kill bill volume 2 que são meus preferidos
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