Os
personagens de O Grande Mestre estão
sempre olhando para trás. E o ato de observar a retaguarda, apesar de estar
inserido em um filme de artes marciais (um lutador derrotado reconhece a
importância de “olhar para trás” no estilo de kung fu que fora usado contra ele
por sua oponente), não é apenas físico, mas sensorial. Como objeto comum na filmografia
de Wong Kar Wai, este também é um filme sobre as memórias, e construído em cima delas.
A
trama, elaborada por Kar Wai e escrita pelo próprio diretor em parceria com
Jingzhi Zou e Haofeng Xu, segue Ip Man (Tony Leung), o famoso mestre de Wing
Chun de Bruce Lee, em uma China tumultuada entre as décadas de 30 e 50. A
narrativa acompanha o protagonista, vendo o caminho de seu estilo de lutar se
cruzar com outras modalidades e escolas do kung fu, enquanto se aproxima de Gong
Er (Ziyi Zhang), bela lutadora dona de uma técnica fascinante, em uma cruzada
por vingança.
Trata-se
de um relato oral, e por isso as andanças de Ip Man por vezes dão lugar a subtramas que parecem
desviar o foco do longa, e que permanecem incompletas ao fim da projeção, servindo mais como aposto do que como chave para a compreensão, que vem em
letreiros que parecem tentar explicar e dar satisfação em relação aos rumos que
as vidas dos personagens, principais ou secundários, tomam quando as imagens
não os abordam.
O Grande Mestre
é muito mais um mosaico da saga de Ip Man na China do que um “filme de
luta” propriamente dito. Através dos olhos do personagem, o espectador revê
momentos importantes de sua vida e da China na primeira metade do século
passado, como o período da ocupação japonesa. Sim, os combates acontecem com frequência,
e são belissimamente filmados, mas Kar Wai se importa muito mais com as
transformações (do homem e da nação) do que com resolver as subtramas (e mesmo
a narrativa principal) do texto. É por esse viés que a obra se encaixa
perfeitamente ao lado da obra-prima Amor
à Flor da Pele e principalmente de Cinzas
do Passado, de 1994, primeira incursão do cineasta no cinema de artes
marciais.
Naquele
belo longa-metragem, o diretor fazia algo parecido, ao se aproveitar do wuxia
(gênero que abraça as novelas de cavalaria chinesas, e que foi popularizado no
ocidente após O Tigre e o Dragão e
os filmes de Zhang Yimou) para narrar uma história que observava personagens se
cruzando, e se reencontrando, tendo a China como pano de fundo para uma análise
sobre o poder da memória.
Esses
reencontros fazem parte de toda a carreira do cineasta, e aqui não é diferente.
A diferença é que, se em Cinzas do
Passado existia um vinho poderoso que fazia os personagens se esquecerem do
que tinham vivido até o primeiro gole, em O
Grande Mestre as lembranças merecem ser contadas, mesmo que sejam bastante
doloridas. Assim, quando o arrojo visual de Kar Wai (que é cineticamente
exuberante, apostando em ângulos fechados e slow motion em combates, mas
adotando uma câmera que perscruta ambientes como fumaça) dá lugar à necessidade
dos personagens de serem fotografados, compreendemos que o que nos é mostrado é
o relato, mas as verdadeiras
cores dos acontecimentos são intraduzíveis, permanecendo apenas com quem os
viveu.
Yi dai zong shi, Wong Kar Wai, 2013 

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