Saturday, June 28, 2014

O Grande Mestre

Os personagens de O Grande Mestre estão sempre olhando para trás. E o ato de observar a retaguarda, apesar de estar inserido em um filme de artes marciais (um lutador derrotado reconhece a importância de “olhar para trás” no estilo de kung fu que fora usado contra ele por sua oponente), não é apenas físico, mas sensorial. Como objeto comum na filmografia de Wong Kar Wai, este também é um filme sobre as memórias, e construído em cima delas.

A trama, elaborada por Kar Wai e escrita pelo próprio diretor em parceria com Jingzhi Zou e Haofeng Xu, segue Ip Man (Tony Leung), o famoso mestre de Wing Chun de Bruce Lee, em uma China tumultuada entre as décadas de 30 e 50. A narrativa acompanha o protagonista, vendo o caminho de seu estilo de lutar se cruzar com outras modalidades e escolas do kung fu, enquanto se aproxima de Gong Er (Ziyi Zhang), bela lutadora dona de uma técnica fascinante, em uma cruzada por vingança.

Trata-se de um relato oral, e por isso as andanças de Ip Man por vezes dão lugar a subtramas que parecem desviar o foco do longa, e que permanecem incompletas ao fim da projeção, servindo mais como aposto do que como chave para a compreensão, que vem em letreiros que parecem tentar explicar e dar satisfação em relação aos rumos que as vidas dos personagens, principais ou secundários, tomam quando as imagens não os abordam.

O Grande Mestre é muito mais um mosaico da saga de Ip Man na China do que um “filme de luta” propriamente dito. Através dos olhos do personagem, o espectador revê momentos importantes de sua vida e da China na primeira metade do século passado, como o período da ocupação japonesa. Sim, os combates acontecem com frequência, e são belissimamente filmados, mas Kar Wai se importa muito mais com as transformações (do homem e da nação) do que com resolver as subtramas (e mesmo a narrativa principal) do texto. É por esse viés que a obra se encaixa perfeitamente ao lado da obra-prima Amor à Flor da Pele e principalmente de Cinzas do Passado, de 1994, primeira incursão do cineasta no cinema de artes marciais.

Naquele belo longa-metragem, o diretor fazia algo parecido, ao se aproveitar do wuxia (gênero que abraça as novelas de cavalaria chinesas, e que foi popularizado no ocidente após O Tigre e o Dragão e os filmes de Zhang Yimou) para narrar uma história que observava personagens se cruzando, e se reencontrando, tendo a China como pano de fundo para uma análise sobre o poder da memória.

Esses reencontros fazem parte de toda a carreira do cineasta, e aqui não é diferente. A diferença é que, se em Cinzas do Passado existia um vinho poderoso que fazia os personagens se esquecerem do que tinham vivido até o primeiro gole, em O Grande Mestre as lembranças merecem ser contadas, mesmo que sejam bastante doloridas. Assim, quando o arrojo visual de Kar Wai (que é cineticamente exuberante, apostando em ângulos fechados e slow motion em combates, mas adotando uma câmera que perscruta ambientes como fumaça) dá lugar à necessidade dos personagens de serem fotografados, compreendemos que o que nos é mostrado é o relato, mas as verdadeiras cores dos acontecimentos são intraduzíveis, permanecendo apenas com quem os viveu.

Yi dai zong shi, Wong Kar Wai, 2013 

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