Monday, February 23, 2015

Cinquenta Tons de Cinza

É triste notar que ganhou força, nos últimos anos, uma corrente de filmes tendo mulheres como protagonistas à frente e atrás das câmeras e que surgem mais misóginos do que qualquer produção que louve a força e a importância do homem como provedor. A Saga Crepúsculo e a refilmagem de Carrie, a Estranha são exemplos claros de longas que, comandados por mulheres, e tendo o sexo feminino em foco, acabam prestando um desserviço ao transformar suas heroínas (e vilãs, no caso de Carrie) em seres acéfalos comandados pelo sexo oposto. Nesse contexto, Cinquenta Tons de Cinza pode ser considerado um marco, uma obra-prima da misoginia ao trazer tudo o que a onda de obras anti-feminismo possui, em um nível quase insuportável.

Adaptado para as telas por Kelly Marcel (a partir do romance de E.L. James, que não li e nem pretendo), a trama acompanha Anastacia Steele (Dakota Johnson), estudante de literatura dedicada, que para ajudar uma amiga, aceita fazer uma entrevista com o bilionário Christian Grey (Jamie Dorman) para ser publicada no jornal da universidade. Grey rapidamente se revela um imbecil, uma espécie de Tony Stark sem o bom humor (e sem a armadura), mas a jovem se vê imediatamente atraída pelo rapaz que, também encantado pela moça (ou vislumbrando a possibilidade de controlá-la feito uma marionete), passa a persegui-la, aparecendo em praticamente todos os lugares em que a garota pense estar sozinha.

O mais sensato para Anastacia seria chamar a polícia, mas, contrariando a lógica (e explicitando as raízes da obra como fan fiction de Crepúsculo), a jovem se vê apaixonada por Grey. Este, porém, possui um segredo (que o texto usa para dar profundidade ao personagem, mas que apenas o deixa mais parecido com o vampiro Edward), e por isso o casal logo assume aquela dinâmica do “não podemos ficar juntos, apesar desse amor gigante”: acontece que o ricaço possui fetiches sadomasoquistas (o texto em momento algum consegue compreender as práticas BDSM em toda sua essência).

A questão em Cinquenta Tons de Cinza, que jamais deixa que os personagens sejam desenvolvidos satisfatoriamente, é a idealização extrema, machista e preconceituosa dos personagens. Anastacia (cuja concepção do nome lembra a expressão “êxtase anal”, o que não deixa de ser cômico) é a jovem estudante, dedicada, inteligente, apaixonada por livros, e virgem (detalhe que deixa o sociopata por quem ela se apaixona bem animado: “por onde você andou?”, ele chega a perguntar). Christian Grey (cujo primeiro nome significa Cristão, e o sobrenome é o mesmo do sadomasoquista vivido por James Spader no excelente Secretária, o que não pode ser coincidência), por sua vez, é o jovem bem-sucedido, bilionário aos vinte e sete anos de idade, sarado e, claro, branco. E se você acha que a etnia do personagem não deveria ser relevante aqui, espere até perceber que Anastacia recusa um pretendente chamado José, amigo seu da faculdade, que é latino, assim como Bella recusava Jacob (ele um descendente de indígenas) em Crepúsculo. Ao que parece, quem não é branco só serve mesmo para ser amigo.

À idealização descabida do texto de Marcel (Christian é daqueles que, ainda nus, tocam piano após o sexo), soma-se a incapacidade da diretora Sam-Taylor Johnson de estabelecer o interesse do espectador pela trama, seja por não conseguir dirigir os seus protagonistas de forma satisfatória (tanto Dakota quanto Dorman são absolutamente inexpressivos), fazendo com que a dança do acasalamento do casal seja involuntariamente engraçada (impossível não rir quando Christian diz que não faz amor, mas que “fode, com força”), ou seja por investir em opções visuais que, beirando a infantilidade, jamais surtem efeito. Reparem, por exemplo, na obviedade do modo como Ana morde os lábios para demonstrar que está com tesão, ou no apartamento dominado pelo vermelho (a cor do desejo, a mesma cor do quarto BDSM que Grey tem em sua casa) para onde Ana se muda. A diretora tenta também metaforizar a tensão sexual entre os amantes (a chuva, simbologia clássica do tesão no cinema, que Ana pega após o primeiro papo com Christian, ou o plano fechado na boca da jovem enquanto ela morde um lápis, objeto fálico, que traz impresso em si o nome do magnata), mas, novamente, causa apenas vergonha alheia e risos.

Aliás, o ritual de sedução entre Anastacia e Grey é constrangedor. O casal demora uma hora para chegar ao quarto, e então Taylor-Johnson mostra suas verdadeiras cores: a cineasta até tenta vender seu filme como sensual, mas, em vez de investir em um estudo das fixações sexuais do rapaz, confunde fetiche e pecado. O próprio Christian tem vergonha de suas preferências, que o longa trata como reflexos de uma infância problemática e de abusos no passado. A indecência e a depravação em Cinquenta Tons de Cinza acabam sendo muito menos devido ao sexo (sempre seguro, com direito a idas à ginecologista e a closes em pacotes de camisinha sendo abertos; nesse contexto os pêlos púbicos de Dakota Johnson até surpreendem, no meio de tanta pseudosacanagem sem-graça), e mais na maneira como o bilionário exerce seu controle sobre a universitária. Na cabeça demente de E.L. James, Kelly Marcel e de Sam Taylor-Johnson, não basta para a mulher que o homem comande o que acontece na cama. Ele precisa dominá-la social e economicamente também.

A certeza que fica é que a putaria suja e esculachada de Adrian Lyne e Paul Verhoeven fazem muita falta no cinema de hoje em dia. Com eles, em filmes como 9 ½ Semanas de Amor e Proposta Indecente, de Lyne, e Instinto Selvagem e a galhofa chamada Showgirls, de Verhoeven, as mulheres eram muito mais donas de si.

Agora, ao que tudo indica, o que elas querem é um verdadeiro príncipe, aquele que as leva para passear de helicóptero e avião, que lhes compra carros e não as deixa nem mesmo visitar suas próprias mães em paz. Tendo tudo isso de bom, ser açoitada e estapeada como forma punitiva, em uma modalidade de sexo opressor que só é bom para ele, é mero detalhe. Vale até a pena se anular por esse pedaço de mau caminho.

Fifty Shades of Grey, Sam Taylor-Johnson, 2015 

1 comment:

joão said...

o filme é um lixo, e no incio eu ete ri de algums coisas ridicula.s

mas o "não faço amor, fodo com força" foi uam das coisas mais constrangedoras que ja vi

grade texto