De que é feita uma obra-prima? No Cinema,
especialmente, quando é que um trabalho eficiente, excelente por vezes,
ultrapassa a barreira do “eficiente” para se tornar maravilhoso? Livros e
teóricos, claro, podem ter explicações diversas sobre o que compõe uma obra a
ponto de ela ser considerada um marco, mas as melhores explanações são aquelas
pessoais, que beiram a pieguice em seu sentimentalismo exacerbado. Roger Ebert
dizia que “sabemos que acabamos de assistir a um grande filme quando não
conseguimos imaginar nosso futuro sem que retornemos àquele universo.” Outros
podem dizer que a verdadeira obra de arte é aquela que dialoga com o sentimento
do público, fazendo o no caso espectador não só mergulhar de cabeça na
narrativa proposta, mas refletir sobre o que acabou de ver em perspectiva.
Pois Divertida
Mente, o novo esforço dos estúdios Pixar, traduz perfeitamente essas
definições.
Com uma trama em sua maior parte
ambientada na cabeça da jovem Riley, o longa se inicia ainda no nascimento da
menina, quando o diretor Pete Docter aproveita para apresentar todos os conceitos
do universo que o filme retrata: enquanto os olhinhos da pequena vêem o mundo
pela primeira vez, o espectador tem também a oportunidade de ver o despertar de
suas emoções, que mal acordam e já começam a dialogar entre si a fim de
determinar como a garotinha está se sentindo. Em alguns anos, porém, Alegria,
Raiva, Medo, Tristeza e Nojo (traduzida para o português como Nojinho) terão o
maior desafio de suas vidas, ao lidarem e tentarem ajudar uma Riley que vai
caindo em depressão quando seus pais, por motivos de adultos, se mudam com ela,
que se afasta da antiga vida, da qual gostava bastante, para começar uma nova
em um lugar que odeia logo de cara.
Sim, Divertida
Mente trata de depressão. E o que é mais louvável e surpreendente (mesmo para
os padrões da Pixar, que apesar de deslizes nos últimos anos, sempre foi
audaciosa na linguagem o suficiente para gerar espectativa sobre seus filmes) é
que o diretor Pete Docter e sua equipe não fazem do fato uma desculpa para apenas entreter
os pais que estiverem na sala de exibição. A abordagem da doença jamais é
tratada como subtexto, sendo feita de maneira profunda e belissimamente
simples, explicitando que o público-alvo da obra é também o infantil.
Costurando a narrativa sobre um sistema claro de cores (amarelo = alegria;
azul = tristeza; vermelho = raiva), simbologias (o Trem do Pensamento,
representação da expressão em inglês “Train
of Thought”) e associações (que geram gags impagáveis, como a que brinca com aquela
música que sempre volta à nossa memória), Docter constrói uma relação de
identificação de seu filme com os pequenos, que mesmo sem compreenderem todas
as entrelinhas, entendem com facilidade a importância da jornada que Alegria e
Tristeza farão pela mente de Riley, para impedirem que ela desista de ser feliz.
Aliás, toda a concepção visual do longa merece
parabéns, em particular os diversos “departamentos” da cabeça de Riley. É
verdade que o mundo exterior também é digno de aplausos, com seus dias e roupas
que progressivamente vão perdendo as cores, mas é no plano mental que a obra se
revela por completo: comandadas pelas emoções a partir de uma espécie de sala
de controle, as memórias básicas geradas por eventos importantes na vida da
menina são responsáveis por diferentes reações, que por sua vez acionam setores
diversos em seu cérebro, e vê-los perderem a cor e desabarem faz com que os sentimentos tentem salvar a jovem. Tais setores são chamados de Ilhas (a da
Família, a da Honestidade, a da Bobeira, a do Hóquei), cada um com design
próprio que evoca as sensações adequadas.
Igualmente talentoso é o desenvolvimento
dos personagens, marca registrada dos filmes da Pixar, a começar por Riley, que
é mais uma menina tratada com o cuidado de alocá-la nos novos tempos da Disney,
ao lado de Merida (Valente),
Vanellope (Detona Ralph) e as irmãs
Elsa e Anna (Frozen). Extremamente
segura, fã de hóquei, brincalhona, a garota em momento algum cai no retrógrado
ponto de vista que há alguns anos colocaria as personagens femininas em posição
frágil e indefesa a maior parte do tempo. Até mesmo sua idealização do namorado
perfeito é ridicularizada. Entre os personagens que vivem dentro dela, a
heterogeneidade se configura desde a sala de controle, com as emoções
desenhadas com personalidade própria (e é cativante perceber que o protagonismo
da Alegria é reconhecido pelos outros sentimentos, que a tratam como líder e
ficam perdidos sem ela), chegando a Bing Bong, antigo amigo imaginário da
menina.
Sendo lançadas de maneira não-intencional
para fora do centro de controle, Alegria e Tristeza encontram personagens
diversos em suas andanças, com destaque para o já citado Bing Bong, um dos
coadjuvantes mais adoráveis entre os filmes do estúdio (e que tem papel fundamental
na trama ao se tornar o guia das duas emoções por todo aquele universo), e caminham
por lugares que a própria protagonista desconhece, incluindo o Subconsciente, a
Imaginação e o amedrontador buraco que provoca o esquecimento de todas as
memórias que ali caem. Nesses momentos, fica claro que não só Docter e seus
roteiristas, como também toda a equipe de Design de Produção, comandada por
Ralph Eggleston, estudou a Psicologia de maneira atenciosa, concebendo de
maneira simples soluções visuais para temas complexos, como o Abstrato, por
exemplo.
A confusão experimentada pelas emoções
dentro da jovem encontram eco no mundo exterior, com um universo que, antes
colorido, se esvai em um cinza chuvoso conforme a vida vai ficando mais e mais
triste. Nesse momento, Divertida Mente
dá mais a última demonstração do porquê deve ser considerada um dos maiores
feitos da Pixar até aqui, ao traçar uma ambiciosa conexão que se baseia no
papel da tristeza para amarrar a solução do desarranjo da vida de Riley e de sua
confusão mental. A melancolia, diz o filme, é tão essencial para a vida quanto
qualquer outra sensação, seja ódio, felicidade ou receio. Negá-lo é um
sintoma grave de que algo não está ajustado corretamente.
E a dor que vem a seguir, terrível (mesmo
se representada por castelos de biscoito quebrados e carrinhos com foguetes
arco-íris acionados por uma canção), só pode ser curada pelo amor.
Inside
Out,
Pete Docter, 2015
3 comments:
obra prima.
e o curta anterior também. grande texto.
Também se tornou meu filme preferido da Pixar até aqui.
Acabei de assistir de novo, e chorei horrores!
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