Sunday, June 21, 2015

Divertida Mente

De que é feita uma obra-prima? No Cinema, especialmente, quando é que um trabalho eficiente, excelente por vezes, ultrapassa a barreira do “eficiente” para se tornar maravilhoso? Livros e teóricos, claro, podem ter explicações diversas sobre o que compõe uma obra a ponto de ela ser considerada um marco, mas as melhores explanações são aquelas pessoais, que beiram a pieguice em seu sentimentalismo exacerbado. Roger Ebert dizia que “sabemos que acabamos de assistir a um grande filme quando não conseguimos imaginar nosso futuro sem que retornemos àquele universo.” Outros podem dizer que a verdadeira obra de arte é aquela que dialoga com o sentimento do público, fazendo o no caso espectador não só mergulhar de cabeça na narrativa proposta, mas refletir sobre o que acabou de ver em perspectiva.

Pois Divertida Mente, o novo esforço dos estúdios Pixar, traduz perfeitamente essas definições.

Com uma trama em sua maior parte ambientada na cabeça da jovem Riley, o longa se inicia ainda no nascimento da menina, quando o diretor Pete Docter aproveita para apresentar todos os conceitos do universo que o filme retrata: enquanto os olhinhos da pequena vêem o mundo pela primeira vez, o espectador tem também a oportunidade de ver o despertar de suas emoções, que mal acordam e já começam a dialogar entre si a fim de determinar como a garotinha está se sentindo. Em alguns anos, porém, Alegria, Raiva, Medo, Tristeza e Nojo (traduzida para o português como Nojinho) terão o maior desafio de suas vidas, ao lidarem e tentarem ajudar uma Riley que vai caindo em depressão quando seus pais, por motivos de adultos, se mudam com ela, que se afasta da antiga vida, da qual gostava bastante, para começar uma nova em um lugar que odeia logo de cara.

Sim, Divertida Mente trata de depressão. E o que é mais louvável e surpreendente (mesmo para os padrões da Pixar, que apesar de deslizes nos últimos anos, sempre foi audaciosa na linguagem o suficiente para gerar espectativa sobre seus filmes) é que o diretor Pete Docter e sua equipe não fazem do fato uma desculpa para apenas entreter os pais que estiverem na sala de exibição. A abordagem da doença jamais é tratada como subtexto, sendo feita de maneira profunda e belissimamente simples, explicitando que o público-alvo da obra é também o infantil. Costurando a narrativa sobre um sistema claro de cores (amarelo = alegria; azul = tristeza; vermelho = raiva), simbologias (o Trem do Pensamento, representação da expressão  em inglês “Train of Thought”) e associações (que geram gags impagáveis, como a que brinca com aquela música que sempre volta à nossa memória), Docter constrói uma relação de identificação de seu filme com os pequenos, que mesmo sem compreenderem todas as entrelinhas, entendem com facilidade a importância da jornada que Alegria e Tristeza farão pela mente de Riley, para impedirem que ela desista de ser feliz.

Aliás, toda a concepção visual do longa merece parabéns, em particular os diversos “departamentos” da cabeça de Riley. É verdade que o mundo exterior também é digno de aplausos, com seus dias e roupas que progressivamente vão perdendo as cores, mas é no plano mental que a obra se revela por completo: comandadas pelas emoções a partir de uma espécie de sala de controle, as memórias básicas geradas por eventos importantes na vida da menina são responsáveis por diferentes reações, que por sua vez acionam setores diversos em seu cérebro, e vê-los perderem a cor e desabarem faz com que os sentimentos tentem salvar a jovem. Tais setores são chamados de Ilhas (a da Família, a da Honestidade, a da Bobeira, a do Hóquei), cada um com design próprio que evoca as sensações adequadas.

Igualmente talentoso é o desenvolvimento dos personagens, marca registrada dos filmes da Pixar, a começar por Riley, que é mais uma menina tratada com o cuidado de alocá-la nos novos tempos da Disney, ao lado de Merida (Valente), Vanellope (Detona Ralph) e as irmãs Elsa e Anna (Frozen). Extremamente segura, fã de hóquei, brincalhona, a garota em momento algum cai no retrógrado ponto de vista que há alguns anos colocaria as personagens femininas em posição frágil e indefesa a maior parte do tempo. Até mesmo sua idealização do namorado perfeito é ridicularizada. Entre os personagens que vivem dentro dela, a heterogeneidade se configura desde a sala de controle, com as emoções desenhadas com personalidade própria (e é cativante perceber que o protagonismo da Alegria é reconhecido pelos outros sentimentos, que a tratam como líder e ficam perdidos sem ela), chegando a Bing Bong, antigo amigo imaginário da menina.

Sendo lançadas de maneira não-intencional para fora do centro de controle, Alegria e Tristeza encontram personagens diversos em suas andanças, com destaque para o já citado Bing Bong, um dos coadjuvantes mais adoráveis entre os filmes do estúdio (e que tem papel fundamental na trama ao se tornar o guia das duas emoções por todo aquele universo), e caminham por lugares que a própria protagonista desconhece, incluindo o Subconsciente, a Imaginação e o amedrontador buraco que provoca o esquecimento de todas as memórias que ali caem. Nesses momentos, fica claro que não só Docter e seus roteiristas, como também toda a equipe de Design de Produção, comandada por Ralph Eggleston, estudou a Psicologia de maneira atenciosa, concebendo de maneira simples soluções visuais para temas complexos, como o Abstrato, por exemplo.

A confusão experimentada pelas emoções dentro da jovem encontram eco no mundo exterior, com um universo que, antes colorido, se esvai em um cinza chuvoso conforme a vida vai ficando mais e mais triste. Nesse momento, Divertida Mente dá mais a última demonstração do porquê deve ser considerada um dos maiores feitos da Pixar até aqui, ao traçar uma ambiciosa conexão que se baseia no papel da tristeza para amarrar a solução do desarranjo da vida de Riley e de sua confusão mental. A melancolia, diz o filme, é tão essencial para a vida quanto qualquer outra sensação, seja ódio, felicidade ou receio. Negá-lo é um sintoma grave de que algo não está ajustado corretamente.

E a dor que vem a seguir, terrível (mesmo se representada por castelos de biscoito quebrados e carrinhos com foguetes arco-íris acionados por uma canção), só pode ser curada pelo amor.

Inside Out, Pete Docter, 2015 

3 comments:

João said...

obra prima.

e o curta anterior também. grande texto.

Raquel Raposo said...
This comment has been removed by the author.
Raquel Raposo said...

Também se tornou meu filme preferido da Pixar até aqui.
Acabei de assistir de novo, e chorei horrores!