Saturday, October 10, 2015

Perdido em Marte

Se existe algo pelo qual Ridley Scott ficou famoso nos últimos dez, quinze anos, além de ele sempre trabalhar com elencos maravilhosos em filmes quase sempre não tão bons, é o fato de que ele acabou se especializando em longas-metragens cada vez mais grandiosos e sisudos. Seus lançamentos pós-Gladiador (que venceu o Oscar de Melhor Filme) acabaram, independentes da temática, da abordagem ou do gênero, legados a uma suntuosidade que deixou suas obras quase sempre solenes demais. Pela sinopse, trailer e cartazes, Perdido em Marte parecia mais um passo de Scott em direção a um cinema cada vez mais sério (marca dos filmes mais futuristas – e também os melhores – do cineasta, como Alien – O Oitavo Passageiro e Blade Runner) e sem vida. Aparentemente um veículo de promoção para Matt Damon (e, de certa forma, realmente é), esse era um trabalho que dava indícios de que se perderia em suas próprias ambições.

E talvez seja justamente por isso que o longa soe como um respiro tão grande na filmografia do cineasta. A trama, escrita por Drew Goddard a partir do romance de Andy Weir, acompanha o astronauta Mark Watney (Damon) em sua tentativa de sobreviver em Marte depois de um acidente tê-lo separado de sua equipe que, dando o companheiro como morto, partiu de volta para a Terra. Paralelamente, a narrativa acompanha os esforços de cientistas, executivos e engenheiros da NASA (Jeff Daniels, Chiwetel Ejiofor, Kristen Wiig, Sean Bean e Donald Glover entre eles) enquanto tentam decidir e elaborar planos para trazer Watney vivo para casa, após o astronauta conseguir estabelecer contato com seu planeta natal, assim como os integrantes da expedição (Jessica Chastain, Michael Peña, Kate Mara, Sebastian Stan, Aksel Hennie), antes tripulada também pelo protagonista, lidando com a notícia de que o companheiro está vivo.

O que parecia um prato cheio para a megalomania habitual de Ridley Scott (que recentemente comprometera, em maior ou menor grau, Robin Hood, Prometheus e Êxodo), curiosamente recebe do diretor um tratamento que encontra na desafetação o segredo de seu sucesso. Apesar de inicialmente dar a impressão de que investirá na grandiloquência, dada a maneira como a fotografia de Dariusz Wolski casa com a profundidade de campo ideal que Scott escolhe para o uso do 3D, Perdido em Marte renega a quase todas as subtramas e discussões que poderiam surgir da premissa “homem solitário em um ambiente inóspito” com o propósito de justamente afastar o longa da solenidade que tem assolado o cineasta, resolvendo com economia embates sobre religião (o crucifixo que Mark segura deitado na cama e o momento em que o personagem de Chiwetel Ejiofor diz que, por ter pai batista e mãe hindu, acredita em vários deuses) e família (Mark pede para que a comandante de sua missão, vivida por Chastain, visite seus pais caso ele morra) e embebendo a narrativa de um bom humor que refresca o sci-fi hollywoodiano.

Tal leveza pode fazer do longa um concorrente mais fraco na corrida por premiações no primeiro trimestre do próximo ano, mas sem dúvidas eleva sua qualidade de cinema enquanto diversão. Parte desse sucesso se dá em razão de seu protagonista, que tenta manter a calma e o bom humor, mesmo quando suas esperanças estão perto do fim. Os vídeos que ele grava como uma espécie de diário, como que para ao mesmo tempo manter sua sanidade e ajudá-lo a encontrar saídas que façam com que ele consiga aumentar suas chances de vida em Marte (suas provisões inicialmente se esgotariam em 31 dias, mas ele teria que viver pelo menos quatro anos sozinho até que a próxima expedição ao planeta vermelho chegasse para resgatá-lo), atingem o espectador de duas formas, tanto no psicológico, ao conectá-lo emocionalmente a Mark, quanto no campo estratégico, situando o público ao explicarem o passo a passo da sobrevivência do astronauta, que lança mão da ciência o tempo todo para não perecer em solo marciano.

Aliás, Watney se revela um personagem fascinante na sua determinação em não morrer. Sozinho, em um ambiente que o ser humano simplesmente não habita, o astronauta se vira como pode ao tentar conviver com – e aprender, por vezes da forma mais difícil – as leis daquela natureza que o desconhece. Suas pequenas vitórias (seu cultivo de batatas, a maneira que encontra para aumentar o tempo de vida de seu veículo, projetado para percorrer apenas pequenas distâncias) se tornam, por consequência, comoventes. Assim como são divertidas as conclusões que o protagonista toma acerca de sua solidão, comparando o isolamento daquele planeta às leis marítimas terráqueas, ou se declarando o primeiro colonizador de Marte, contexto que justifica o título original do filme (The MartianO Marciano, no literal).

Perdido em Marte compartilha semelhanças estruturais com outros filmes em que um homem precisa se virar para não ser derrotado pela natureza que o cerca. Sua aura de blockbuster, no entanto, retira da narrativa a tendência a evocações. Não existe, por exemplo, momento catártico, como o choro de Sandra Bullock ou seu sono em posição fetal em Gravidade (Cuarón, 2013), ou a crônica do Homem pronto para retomar o contato com a sociedade, reafirmando um contrato com a civilização, discussão conduzida por Náufrago (Zemeckis, 2000) e Até o Fim (Chandor, 2013). A única coisa que reside neste conto de sobrevivência de Ridley Scott (se não brilhante, ao menos divertidíssimo) é a vontade de um botânico que, para sair vivo de uma situação aparentemente irreversível, tem que “usar a ciência até fazer bico” e esperar por seus amigos.

E, esvaziado de alegorias como está, esta é uma obra que surge surpreendentemente leve e com uma mensagem de esperança e otimismo que, embora jogue contra a suspensão de descrença (o mundo unido em corrente pelo mesmo ideal é daquelas difíceis de engolir), funciona muito bem justamente por se afastar do sci-fi sombrio que seu diretor tanto gosta de rodar.

The Martian, Ridley Scott, 2015 ½

1 comment:

Raquel Raposo said...

Amei o filme e fiquei bem comovida!
Grande texto.