Se
existe algo pelo qual Ridley Scott ficou famoso nos últimos dez, quinze anos,
além de ele sempre trabalhar com elencos maravilhosos em filmes quase sempre
não tão bons, é o fato de que ele acabou se especializando em longas-metragens
cada vez mais grandiosos e sisudos. Seus lançamentos pós-Gladiador (que venceu o Oscar de Melhor Filme) acabaram, independentes da
temática, da abordagem ou do gênero, legados a uma suntuosidade que deixou suas
obras quase sempre solenes demais. Pela sinopse, trailer e cartazes, Perdido em Marte parecia mais um passo
de Scott em direção a um cinema cada vez mais sério (marca dos filmes mais
futuristas – e também os melhores – do cineasta, como Alien – O Oitavo Passageiro e Blade
Runner) e sem vida. Aparentemente um veículo de promoção para Matt Damon
(e, de certa forma, realmente é), esse era um trabalho que dava indícios de que
se perderia em suas próprias ambições.
E
talvez seja justamente por isso que o longa soe como um respiro tão grande na filmografia
do cineasta. A trama, escrita por Drew Goddard a partir do romance de Andy Weir,
acompanha o astronauta Mark Watney (Damon) em sua tentativa de sobreviver em
Marte depois de um acidente tê-lo separado de sua equipe que, dando o
companheiro como morto, partiu de volta para a Terra. Paralelamente, a
narrativa acompanha os esforços de cientistas, executivos e engenheiros da NASA
(Jeff Daniels, Chiwetel Ejiofor, Kristen Wiig, Sean Bean e Donald Glover entre
eles) enquanto tentam decidir e elaborar planos para trazer Watney vivo para
casa, após o astronauta conseguir estabelecer contato com seu planeta natal,
assim como os integrantes da expedição (Jessica Chastain, Michael Peña, Kate
Mara, Sebastian Stan, Aksel Hennie), antes tripulada também pelo protagonista,
lidando com a notícia de que o companheiro está vivo.
O
que parecia um prato cheio para a megalomania habitual de Ridley Scott (que
recentemente comprometera, em maior ou menor grau, Robin Hood, Prometheus e
Êxodo), curiosamente recebe do
diretor um tratamento que encontra na desafetação o segredo de seu sucesso. Apesar
de inicialmente dar a impressão de que investirá na grandiloquência, dada a
maneira como a fotografia de Dariusz Wolski casa com a profundidade de campo
ideal que Scott escolhe para o uso do 3D, Perdido
em Marte renega a quase todas as subtramas e discussões que poderiam surgir
da premissa “homem solitário em um ambiente inóspito” com o propósito de
justamente afastar o longa da solenidade que tem assolado o cineasta,
resolvendo com economia embates sobre religião (o crucifixo que Mark segura deitado
na cama e o momento em que o personagem de Chiwetel Ejiofor diz que, por ter
pai batista e mãe hindu, acredita em vários deuses) e família (Mark pede para
que a comandante de sua missão, vivida por Chastain, visite seus pais caso ele
morra) e embebendo a narrativa de um bom humor que refresca o sci-fi hollywoodiano.
Tal
leveza pode fazer do longa um concorrente mais fraco na corrida por premiações
no primeiro trimestre do próximo ano, mas sem dúvidas eleva sua qualidade de
cinema enquanto diversão. Parte desse sucesso se dá em razão de seu
protagonista, que tenta manter a calma e o bom humor, mesmo quando suas
esperanças estão perto do fim. Os vídeos que ele grava como uma espécie de
diário, como que para ao mesmo tempo manter sua sanidade e ajudá-lo a encontrar
saídas que façam com que ele consiga aumentar suas chances de vida em Marte
(suas provisões inicialmente se esgotariam em 31 dias, mas ele teria que viver
pelo menos quatro anos sozinho até que a próxima expedição ao planeta vermelho
chegasse para resgatá-lo), atingem o espectador de duas formas, tanto no
psicológico, ao conectá-lo emocionalmente a Mark, quanto no campo estratégico,
situando o público ao explicarem o passo a passo da sobrevivência do
astronauta, que lança mão da ciência o tempo todo para não perecer em solo
marciano.
Aliás,
Watney se revela um personagem fascinante na sua determinação em não morrer.
Sozinho, em um ambiente que o ser humano simplesmente não habita, o astronauta
se vira como pode ao tentar conviver com – e aprender, por vezes da forma mais
difícil – as leis daquela natureza que o desconhece. Suas pequenas vitórias
(seu cultivo de batatas, a maneira que encontra para aumentar o tempo de vida
de seu veículo, projetado para percorrer apenas pequenas distâncias) se tornam,
por consequência, comoventes. Assim como são divertidas as conclusões que o
protagonista toma acerca de sua solidão, comparando o isolamento daquele
planeta às leis marítimas terráqueas, ou se declarando o primeiro colonizador
de Marte, contexto que justifica o título original do filme (The Martian – O Marciano, no literal).
Perdido em Marte
compartilha semelhanças estruturais com outros filmes em que um homem precisa
se virar para não ser derrotado pela natureza que o cerca. Sua aura de
blockbuster, no entanto, retira da narrativa a tendência a evocações. Não
existe, por exemplo, momento catártico, como o choro de Sandra Bullock ou seu
sono em posição fetal em Gravidade
(Cuarón, 2013), ou a crônica do Homem pronto para retomar o contato com a
sociedade, reafirmando um contrato com a civilização, discussão conduzida por Náufrago (Zemeckis, 2000) e Até o Fim (Chandor, 2013). A única
coisa que reside neste conto de sobrevivência de Ridley Scott (se não
brilhante, ao menos divertidíssimo) é a vontade de um botânico que, para sair
vivo de uma situação aparentemente irreversível, tem que “usar a ciência até
fazer bico” e esperar por seus amigos.
E,
esvaziado de alegorias como está, esta é uma obra que surge surpreendentemente
leve e com uma mensagem de esperança e otimismo que, embora jogue contra a
suspensão de descrença (o mundo unido em corrente pelo mesmo ideal é daquelas difíceis
de engolir), funciona muito bem justamente por se afastar do sci-fi sombrio que
seu diretor tanto gosta de rodar.
1 comment:
Amei o filme e fiquei bem comovida!
Grande texto.
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