Saturday, October 24, 2015

Sicario: Terra de Ninguém

É difícil vermos um filme que tenha posicionamento tão veemente em relação ao combate que os governos travam há décadas contra o narcotráfico. Pois Sicario: Terra de Ninguém não aparenta ter dúvida alguma ao afirmar em imagens que essa guerra não será vencida. Jamais, ou pelo menos enquanto limites territoriais e leis de soberania nacional forem desrespeitados, que vingança seja parte do plano ou que derrubar um criminoso utilizando outro como peça-chave tática, a batalha contra as drogas está perdida, e remediar parece ser a única saída, em um contexto que transforma os lugares em terras sem dono e sem lei, em que lobos disputam o poder.

Denis Villeneuve surge como um diretor apropriado para uma trama que esteticamente habita a linha entre o policial tenso e o filme de guerra. O canadense apareceu para o mundo como um cineasta preocupado com a tensão instaurada, mas ainda mais com aquele momento que justamente a antecede, aquela escalada que torna as coisas insuportáveis antes de explodirem. Lembra, nesse interesse, Kleber Mendonça Filho. A diferença entre os dois, no entanto, é que O Som ao Redor, único longa-metragem de Kleber, se atinha à construção do mal-estar, enquanto os filmes de Villeneuve, como Incêndios, O Homem Duplicado e, principalmente, Os Suspeitos, não fugiam da responsabilidade de exibi-lo, mesmo que se esticassem além da conta para atingir tal feito.

Aqui, apoiado pelo roteiro de Taylor Sheridan (em sua estreia nas telas na função), o diretor ambienta sua trama na fronteira entre México e Estados Unidos, na qual é montada uma força-tarefa com o intuito de capturar o mafioso que controla a venda de drogas na região. Kate Macer (Emily Blunt), agente do FBI, é adicionada à operação, inicialmente pelas suas habilidades. Depois de introduzida ao comando, mais detalhes da missão lhe são negados, enquanto a policial, auxiliada por Reggie (Daniel Kaluuya), seu parceiro, tem que lidar com as atitudes nada ortodoxas do agente Matt (Josh Brolin) e do misterioso Alejandro (Benicio Del Toro, em composição digna de prêmios), motivados a fazerem de tudo para cumprir o objetivo.

Kate discorda dos métodos da equipe desde o início. E parece ser esse mesmo o papel da protagonista, o de questionar os atos daqueles homens sem jamais liderá-los. Apesar de ser figura de destaque e exercer liderança dentro do FBI, a agente parece desconcertada quando a sua ideologia se mostra incompatível com a metodologia aplicada pela força-tarefa, mesmo que ela esteja a bordo da operação por motivos até certo ponto pessoais: ela busca vingança pela morte de dois policiais, em uma batida feita em uma casa na qual funcionava um dos centros de operação de um cartel.

Essa sequência, aliás, que abre a narrativa, é primorosa por estabelecer, ao mesmo tempo, as motivações de sua personagem principal e o tom em que Sicario buscará se inserir. A. O. Scott, crítico do The New York Times, faz uma afirmativa interessante sobre Denis Villeneuve, de que o cineasta não faz filmes violentos, e sim filmes sobre a violência, e os corpos mutilados que estão distribuídos atrás do dry wall na casa que abre o longa-metragem, assim como os cadáveres que o cartel pendura em pontes, reiteram esse ponto de vista, de que Villeneuve está muito mais preocupado em estudar a brutalidade do que em filmá-la se desenrolar. Nesse âmbito, a combinação entre a fotografia de Roger Deakins, que aborda de forma infernal a natureza ensolarada do lugar, e a trilha sonora propositalmente arrastada de Jóhan Jóhansson dá o matiz ideal para o diretor em sua abordagem.

Talvez seja por isso que as principais sequencias de ação do longa (o engarrafamento e o túnel) sejam abordadas pelo cineasta com muito mais atenção à escalada da sensação de claustrofobia e horror crescente do que às balas disparadas pelos homens envolvidos nas situações. A questão que envolve e move a trama é muito mais o que a guerra tira dos homens do que a guerra em si (que aqui, reiterando, não chega nem perto do fim). É só pegarmos o exemplo de como o ambiente familiar de um coadjuvante é observado, no intuito de criar um relato que seja muito menos sobre conflitos do que sobre seus resultados.

Quando foca nos personagens, aliás, esta é uma obra que se aproxima de longas-metragens que mostravam justamente os efeitos que a dedicação à batalha tem nos envolvidos. Aproxima-se de Guerra ao Terror e A Hora Mais Escura (Bigelow, 2008 e 2012) na natureza contestadora de Kate, e não é à toa que nos dois momentos em que a protagonista se posiciona contra as ações de seus superiores, sejam eles Matt (cuja displicência e desprendimento ao usar chinelos e barba por fazer em uma reunião fazem par com seu modus operandi insano) ou seu chefe no FBI (vivido por Victor Garber), a bandeira dos EUA faz parte do enquadramento quando das respostas de que os limites do correto foram alterados. O filme ressoa também como Batman: O Cavaleiro das Trevas (Nolan, 2008), quando se debruça sobre a questão de que “os fins justificam os meios” e ao perscrutar as motivações de Alejandro, que (como não deve ser novidade para o espectador mais experiente) remetem a fantasmas do passado do sujeito.

Sem jamais oferecer soluções fáceis aos dramas de seus personagens, que terminam claramente abalados pela espiral em descenso que acabaram de enfrentar e/ou atitudes que tomaram, este é, acima de tudo, um filme corajoso. Consegue ser brutal sem ser gratuito; é consciente das questões sociais e políticas sobre as quais se debruça, mas também é psicologicamente brilhante, ao enfocar o olho por olho como única solução viável naquele universo sem fazer julgamentos de moral. É daquelas obras que têm a bravura de enfocar, em plano-fechado, o rosto horrorizado de um pai que viu seus filhos e esposa serem assassinados na sua frente. Assim como Kate, Sicario: Terra de Ninguém começa com a obsessão por corrigir o que está errado, mas acaba abraçando o caos, e assinando embaixo.

Sicario, Denis Villeneuve, 2015 

1 comment:

Raquel Raposo said...

Filme sensacional!
E concordo com a grande atuação do Benicio Del Toro.
Ótimo texto!