Saturday, May 06, 2017

A Mulher Que Se Foi

Assistir à filmografia de Lav Diaz é tarefa das mais árduas, mas não por ele utilizar símbolos muito complexos, ou uma linguagem extremamente arrojada para contar suas histórias. O filipino não é um cineasta cujos filmes geram interpretações muito díspares. O grande desafio do cineasta para seu espectador é a duração de suas obras, que chegam a passar das 8 horas (Kagadanan Sa Banwaan Ning Mga Engkanto, de 2007, foi lançado com um corte de 9 horas). Ao público, resta controlar as distrações e conseguir o foco necessário para embarcar nas tramas abordadas pelo diretor.

O que facilita as coisas para quem se aventura por algum de seus trabalhos é a percepção de que as muitas horas que cada uma de suas obras possui não são gordura, nem “estilo por estilo”, e muito menos um propósito de peneirar seus apreciadores. São um meio, uma ferramenta para que funcione da melhor forma o método de contar histórias do cineasta, que gosta de se debruçar sobre o cotidiano, sobre o dia-a-dia de seus personagens, para aos poucos revelar motivações, comportamentos, relações. E no hábito de abraçar o rotineiro, Lav Diaz faz filmes sobre permanecer.

Em A Mulher Que Se Foi, Diaz (que se divide nas funções de diretor, roteirista, montador e diretor de fotografia) adapta o conto “Deus vê a verdade, mas custa a revelar”, de Leon Tolstói. A trama acompanha Horacia (Charo Santos, em composição impressionante), que foi condenada a 30 anos de prisão por um assassinato que não cometeu. Ao ser solta, ela precisa se reconectar com a família (sua filha Minerva, vivida por Marjorie Lorico, tem agora 37 anos; Horacia também possui um filho, que está desaparecido), se despedir de entes que morreram nas três décadas em que esteve isolada do mundo, e planejar sua vingança contra o responsável por incriminá-la.

Enquanto investiga e caça Rodrigo Trinidad (Michael de Mesa), o ricaço que armou sua prisão, ela acaba cruzando com personagens que se tornam seus amigos. A mendiga Mameng (Jean Judith Javier), um vendedor (Nonie Buencamino) e, principalmente, a travesti Hollanda (o sensacional John Lloyd Cruz) são ajudados de maneiras diferentes por Horacia, que se compraz e tenta resolver as injustiças sociais e econômicas sofridas por aquelas pessoas. A protagonista foi presa durante a ditadura de Ferdinando Marcos e libertada apenas no governo de Fidel Valdez Ramos, e por isso a alegoria é evidente: Horacia é as Filipinas e os tipos marginais que ela encontra, além de seu próprio encarceramento, são microcosmos do abismo socioeconômico vivido pela nação filipina há tanto tempo.

É clara a intenção de Lav Diaz de fazer muitas coisas ao mesmo tempo com seu longa-metragem. A Mulher Que Se Foi consegue, em suas quase 4 horas, ser estudo de personagem, filme de vingança e cinema político, sem se tornar enfadonho. O diretor possui uma visão apurada para captar os afazeres diários de cada um e, quase como um documentarista, revisita seus personagens dia após dia, noite após noite, enquanto todos eles, tanto Horacia quanto seus coadjuvantes (inclusive Rodrigo, cujo hábito de ir à igreja e sua amizade com o padre local o torna um personagem mais profundo do que aparenta), vivem suas vidas.

É essa prática de revisitar aquele universo diariamente que faz com que A Mulher Que Se Foi seja um filme que não dá impressão de ter sequer uma cena que seja dispensável. Cada enquadramento, cada diálogo, cada sombra que a fotografia – lindíssima, por sinal – lança sobre aquelas pessoas parece essencial para o conto de vingança e retrato de desigualdades que o cineasta, em seu décimo-sétimo longa de ficção (boa parte de sua filmografia permanece inédita nos cinemas brasileiros), resolve observar. Detratores podem até reclamar do tédio que é assistir a filmes políticos tão longos, ou até de seus planos-sequência que registram apenas pessoas existindo, mas foi apoiado nessa paciência que Lav Diaz passou a ser considerado um cronista de seu país.

Ang babaeng humayo, Lav Diaz, 2016 ½

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