Algumas
obras existem para provar um argumento. A onda recente do terror nacional – que
nos últimos anos, entre altos e baixos, nos brindou com o excelente Quando Eu era Vivo (Marco Dutra, 2014)
e alguns outros, como os fracos Isolados
(Tomas Portella, 2014) e O Diabo Mora
Aqui (Rodrigo Gasparini e Dante Vescio, 2015) – parece estar aí por motivo
semelhante, como que para justificar o ponto de vista de que é possível um
filme ser importante sem ser necessariamente bom. Independente de possíveis
falhas, são dignos e merecem certo destaque no nosso circuito apenas por seus
realizadores terem sido corajosos o suficiente para terem feito filmes de
gênero, que explicitam referências estrangeiras sem se deixarem contaminar por
completo, mantendo sempre certo eco na nossa produção cinematográfica. Agora,
chega a vez de O Rastro, de J.C.
Feyer, mais um longa-metragem a se aventurar pela mesma seara, e novamente com
resultados inconstantes.
A
trama acompanha João (Rafael Cardoso), uma vez médico do Hospital São José, no
Rio de Janeiro, mas que agora trabalha para o governo carioca, em um setor que
acaba sendo responsável por fechar diversos hospitais públicos devido à crise
financeira que o estado atravessa. Sua vida – e a de Leila, sua esposa grávida,
vivida por Leandra Leal – vira um inferno justamente quando chega a hora de
fechar o São José, remanejando seus pacientes para outras instituições. Primeiro,
Heitor (Jonas Bloch), chefe dos médicos do hospital e antigo mentor de João, se
coloca terminantemente contra a decisão do governo. Depois, o sumiço da menina
Júlia (Natália Maciel Guedes) dentro do São José lança o protagonista em uma
investigação insana pelo paradeiro da menina.
Pela
sinopse, já fica clara a intenção de J.C. Feyer de criar todo um clima de
suspense e terror, mas sem jamais esquecer a crítica social. Desde os primeiros
segundos de projeção, o espectador já se depara com a cobertura midiática das
consequências da falência do Rio. O fechamento dos hospitais origina um clima
de revolta na população, que vai às ruas e protesta na frente das instituições.
Não é por acaso, também, o fato de o filme ser ambientado em ano de eleições e
de o candidato da situação, interpretado por Domingos Montagner (em um de seus
últimos trabalhos), ter certa importância na narrativa. No entanto, falta
equilíbrio nas intenções do diretor. Em certos momentos, pintar um quadro de
caos social parece ser o único propósito de Feyer, que se esquece de trabalhar
o horror de forma mais satisfatória.
O
fato de todo o elemento sobrenatural de O
Rastro existir apenas para metaforizar a decadência da saúde pública no
Brasil enfraquece o resultado. O design de produção de Daniel Flaksman é
eficiente, e a direção de Feyer se inspira claramente em bons exemplos
hollywoodianos recentes – de A Mulher de
Preto (James Watkins, 2012) aos filmes de fantasmas de James Wan –, mas dá
impressão de não estar preocupado em fazer algo que suas inspirações faziam tão
bem, se livrar dos lugares-comuns e dos sustos fáceis que fragilizam o clima.
Não faltam acordes altíssimos da trilha sonora por aqui, assim como sequencias
de pesadelos e do velho clichê do gênero, os personagens que se tornam ótimos
investigadores em questão de horas.
Mesmo
assim, apesar dos muitos percalços, O
Rastro não deixa de ser interessante, muito graças aos seus intérpretes. A
obsessão de João e a agonia de Leila são tocantes, porque Rafael Cardoso e
Leandra Leal são os destaques de um elenco que conta com nomes famosos, como os
já citados Montagner e Bloch, além de Claudia Abreu e Felipe Camargo, em papéis
de certa relevância. Além disso, o texto de Bianca Manella e André Pereira é
esperto ao tentar, e conseguir, esconder bem sua reviravolta final, que é
surpreendente e corajosa o bastante para causar alguns arrepios. E o final,
apesar de incorrer em clichês e referências que lhe diluem a criatividade, não
é genérico a ponto de ser decepcionante. É quase um Guillermo Del Toro com
menos sutileza.
Uma
experiência que, se não é exatamente eficaz, consegue ao menos prender a
atenção do espectador, este é mais um longa que engrossa a lista das produções
de terror no cinema brasileiro recente, que aos poucos acusa um bem-vindo
renascimento, ainda tímido, precisando de bastante lapidação, mas nem por isso
sem valor. Que O Rastro faça o
barulho necessário para justificar o investimento para produções do gênero no
País. É esperar, e torcer muito, para ver.
O Rastro,
J.C. Feyer, 2017 ½
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