Thursday, May 18, 2017

O Rastro

Algumas obras existem para provar um argumento. A onda recente do terror nacional – que nos últimos anos, entre altos e baixos, nos brindou com o excelente Quando Eu era Vivo (Marco Dutra, 2014) e alguns outros, como os fracos Isolados (Tomas Portella, 2014) e O Diabo Mora Aqui (Rodrigo Gasparini e Dante Vescio, 2015) – parece estar aí por motivo semelhante, como que para justificar o ponto de vista de que é possível um filme ser importante sem ser necessariamente bom. Independente de possíveis falhas, são dignos e merecem certo destaque no nosso circuito apenas por seus realizadores terem sido corajosos o suficiente para terem feito filmes de gênero, que explicitam referências estrangeiras sem se deixarem contaminar por completo, mantendo sempre certo eco na nossa produção cinematográfica. Agora, chega a vez de O Rastro, de J.C. Feyer, mais um longa-metragem a se aventurar pela mesma seara, e novamente com resultados inconstantes.

A trama acompanha João (Rafael Cardoso), uma vez médico do Hospital São José, no Rio de Janeiro, mas que agora trabalha para o governo carioca, em um setor que acaba sendo responsável por fechar diversos hospitais públicos devido à crise financeira que o estado atravessa. Sua vida – e a de Leila, sua esposa grávida, vivida por Leandra Leal – vira um inferno justamente quando chega a hora de fechar o São José, remanejando seus pacientes para outras instituições. Primeiro, Heitor (Jonas Bloch), chefe dos médicos do hospital e antigo mentor de João, se coloca terminantemente contra a decisão do governo. Depois, o sumiço da menina Júlia (Natália Maciel Guedes) dentro do São José lança o protagonista em uma investigação insana pelo paradeiro da menina.

Pela sinopse, já fica clara a intenção de J.C. Feyer de criar todo um clima de suspense e terror, mas sem jamais esquecer a crítica social. Desde os primeiros segundos de projeção, o espectador já se depara com a cobertura midiática das consequências da falência do Rio. O fechamento dos hospitais origina um clima de revolta na população, que vai às ruas e protesta na frente das instituições. Não é por acaso, também, o fato de o filme ser ambientado em ano de eleições e de o candidato da situação, interpretado por Domingos Montagner (em um de seus últimos trabalhos), ter certa importância na narrativa. No entanto, falta equilíbrio nas intenções do diretor. Em certos momentos, pintar um quadro de caos social parece ser o único propósito de Feyer, que se esquece de trabalhar o horror de forma mais satisfatória.

O fato de todo o elemento sobrenatural de O Rastro existir apenas para metaforizar a decadência da saúde pública no Brasil enfraquece o resultado. O design de produção de Daniel Flaksman é eficiente, e a direção de Feyer se inspira claramente em bons exemplos hollywoodianos recentes – de A Mulher de Preto (James Watkins, 2012) aos filmes de fantasmas de James Wan –, mas dá impressão de não estar preocupado em fazer algo que suas inspirações faziam tão bem, se livrar dos lugares-comuns e dos sustos fáceis que fragilizam o clima. Não faltam acordes altíssimos da trilha sonora por aqui, assim como sequencias de pesadelos e do velho clichê do gênero, os personagens que se tornam ótimos investigadores em questão de horas.

Mesmo assim, apesar dos muitos percalços, O Rastro não deixa de ser interessante, muito graças aos seus intérpretes. A obsessão de João e a agonia de Leila são tocantes, porque Rafael Cardoso e Leandra Leal são os destaques de um elenco que conta com nomes famosos, como os já citados Montagner e Bloch, além de Claudia Abreu e Felipe Camargo, em papéis de certa relevância. Além disso, o texto de Bianca Manella e André Pereira é esperto ao tentar, e conseguir, esconder bem sua reviravolta final, que é surpreendente e corajosa o bastante para causar alguns arrepios. E o final, apesar de incorrer em clichês e referências que lhe diluem a criatividade, não é genérico a ponto de ser decepcionante. É quase um Guillermo Del Toro com menos sutileza.

Uma experiência que, se não é exatamente eficaz, consegue ao menos prender a atenção do espectador, este é mais um longa que engrossa a lista das produções de terror no cinema brasileiro recente, que aos poucos acusa um bem-vindo renascimento, ainda tímido, precisando de bastante lapidação, mas nem por isso sem valor. Que O Rastro faça o barulho necessário para justificar o investimento para produções do gênero no País. É esperar, e torcer muito, para ver.

O Rastro, J.C. Feyer, 2017 ½

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