A
série Cinquenta Tons, com sua
decisão de colocar em segundo plano o desenvolvimento de personagens em relação
a tudo mais que aconteça em cena, deixa muitas marcas superficiais no
espectador. E, na superfície, talvez a primeira e mais duradoura impressão que
os filmes deixam é a de que o cinema norte-americano não sabe lidar bem com o
sexo que não é praticado da maneira mais convencional. Ao incluir o fascínio de
um personagem por alguma prática sexual inortodoxa, é preciso deixar bem claro
que ela surge não do gosto pessoal de tal homem ou mulher, mas de um trauma
passado, muitas vezes relacionado à morte.
Cinquenta Tons Mais
Escuros trata de fazer isso com as inclinações
sadomasoquistas de Christian Grey (Jamie Dorman) logo na primeira cena. Em um
flashback sépia digno de novela das oito, o longa aborda a morte da mãe do
protagonista e trata logo de redimir o príncipe encantado deixando claro que
Grey não é um tarado de atitudes heréticas, mas um homem sofrido que revela na
cama sua infância difícil, numa das obsessões edipianas mais óbvias da História do Cinema. Feita a remissão, o texto de Niall Leonard a partir do romance
homônimo de E.L. James dá sequência aos eventos do primeiro filme. Grey e Anastasia
(Dakota Johnson) estão separados e, no que se revela um acerto de continuidade
do longa, Grey continua um stalker assustador, cercando Ana de todas as formas
e enviando presentes à moça, que resiste.
Isso
até ele pedir para ela voltar. Ela diz que quer refazer as regras do
relacionamento, e que não está afim de apanhar de forma desagradável como
antes, mas volta para ele. A partir daí, é um vira-desvira, tira roupa-bota
roupa com estética praticamente idêntica ao longa anterior. A série continua
apostando em simbologias óbvias como a água para representar o quanto os
personagens estão excitados ou Anastasia vestindo uma camisa de Christian como
uma metáfora de sua imersão no mundo do bilionário, e é provável que daqui a
alguns meses as pessoas não consigam distinguir as cenas de sexo dos dois
primeiros filmes da franquia.
Mas
só o sexo. Cinquenta Tons Mais Escuros
tem um diretor, se não exatamente ótimo, mais habilidoso do que Sam
Taylor-Johnson, que dirigiu Cinquenta
Tons de Cinza. James Foley, com mais de trinta anos de carreira e thrillers
com cara de filmes feitos para a televisão – Dominados Pelo Desejo (1990), A
Estranha Perfeita (2007) – no currículo, parece entender que o único
caminho possível para que o romance de James seja bem-sucedido nas telas é se
ele for enfim filmado como um softcore porn que presta homenagens aos filmes mais
famosos do estilo. Essa é provavelmente a razão da escalação de Kim Basinger
para viver Elena Lincoln, mulher mais velha que iniciou Christian.
De
suspenses na linha do antigo Super Cine, sessão na qual seus filmes eram
exibidos na TV aberta (um deles, Medo,
de 1996, contém muitas semelhanças com Cinquenta
Tons, com a violência no lugar do sexo), o cineasta retira mais do que o
modo que filma a nudez dos personagens (bunda e peito, sim; genitália, não).
Está no suspense barato a forma com que ele aborda a vilania das personagens de
Basinger e de Eric Johnson, que vive o chefe de Anastasia, e insere uma
presença quase sobrenatural em cena, personificada pela ex-submissa de Grey,
que passa a perseguir o casal e aparecer dentro do quarto deles durante a
noite, e desaparecer logo depois.
Foley
age como um tipo de salvador da pátria, entendendo o material de que dispunha e
vendo nele certo potencial cômico, nos nomes dos personagens (o pilantra
encarnado por Johnson se chama Jack Hyde; Robert Louis Stevenson deve ter se
revirado no caixão) e nas situações (como um batom que recebe uma utilidade hilária), especialmente no comportamento do casal
principal. Impossível não rir com a sequência de eventos que envolve Grey
sobrevivendo a um desastre de helicóptero, chegando em casa com a testa
machucada durante o noticiário que comenta o acidente, recebendo a resposta de
seu pedido de casamento e indo transar (no chuveiro, claro) logo depois.
E
está aí, nesse recorte do filme, o indício de que o diretor esteja planejando
um golpe de uma comicidade genial para o final da saga. Em toda sua
duração, na pantomima que toma conta da narrativa (com direito a baile de máscaras),
Cinquenta Tons Mais Escuros dá
pistas de que Anastasia está diferente, tendo evoluído da menina que se deixa
envolver por um bilionário sadomasoquista para uma mulher esperta, seduzida
pela riqueza de seu namorado e que usa a seu favor sua resistência ao sexo anal
e o gosto dele por umas palmadas e uns brinquedinhos na hora do vamos ver.
Tomara
que Foley se espelhe menos nos livros de James e mais em cineastas como Paul
Verhoeven (cineasta que melhor filmou o ridículo sexo heterossexual branco
hollywoodiano nas últimas décadas) e Adrian Lyne, subvertendo a água com açúcar
e transformando a Cinderela de Dakota Johnson em uma megera que deu o golpe do
baú. O desfecho da trilogia poderia até mudar de nome. Em vez de Cinquenta Tons de Liberdade, eu
gostaria muito mais de ver uma história chamada O Dominador e a Alpinista Social.
Fifty Shades Darker,
James Foley, 2017
3 comments:
Seu texto me deixa quase curioso pra ver.
"Ao incluir o fascínio de um personagem por alguma prática sexual inortodoxa, é preciso deixar bem claro que ela surge não do gosto pessoal de tal homem ou mulher, mas de um trauma passado, muitas vezes relacionado à morte."
Concordo 100% com essa sua análise. Mais uma vez, o gosto por práticas sexuais "ecêntricas" deve ser analisado como um grande trauma do passado e nunca como uma simples preferência sexual, sem nenhuma explicação mirabolante p tal.
Realmente lendo seu texto, o filme parece ate ser interessante.
Mas como ja li os livros (sim. Julgue-me), sei o quanto a narrativa é canastrona e rasa.
E sim, achei a sua sugestão de título muito mais interessante e precisa do que o original.
Excêntricas**
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