Friday, September 01, 2017

Atômica

Existem, talvez propositalmente, dois filmes dentro de Atômica. Um é o filme de ação rápido, montado de maneira frenética e com sequências de luta empolgantes, e o outro é o filme de espionagem clássico, de personagens que delegam e executam os trabalhos mais secretos – e frequentemente sujos – em busca da manutenção do status quo, movimentados por eternos MacGuffins. A questão é que essas duas linhas jamais se complementam, e o filme de David Leitch (em seu segundo longa-metragem como diretor) acaba se tornando uma experiência até interessante, mas problemática, com ideias que se confrontam e um retrato problemático que a narrativa faz da sua protagonista.

A trama escrita por Kurt Johnstad é ambientada em 1989, nos últimos dias antes da queda do Muro de Berlim, e acompanha Lorraine Broughton (Charlize Theron), agente secreta do MI-6 que viaja à capital alemã para uma missão que consiste em investigar a morte de um colega e recuperar uma lista de agentes duplos. Em terras germânicas, Broughton teria a ajuda de David Percival (James MacAvoy), também agente inglês e que, por estar infiltrado há mais tempo, conhece melhor a cidade e seu submundo. Não demora muito até que Lorraine perceba que a KGB conhece sua missão e está disposta a arruiná-la.

Atômica possui duas linhas temporais. Toda a missão é narrada por Lorraine tempos depois, quando interrogada por dois agentes, um inglês (Toby Jones) e um americano (John Goodman). É uma estrutura que funciona da mesma forma que o material que é adaptado aqui, a graphic novel The Coldest City, escrita por Antony Johnston e desenhada pelo brasileiro Sam Hart. Além disso, é nessa narrativa dupla que o longa apresenta duas faces diferentes, sendo parte história de espionagem à la John Le Carré e parte filme de ação, terreno mais conhecido do diretor David Leitch, ex-dublê que estreou na direção com o ótimo De Volta ao Jogo (John Wick, 2014).

Provavelmente é por isso que o longa se realiza na plenitude apenas enquanto filme de pancadaria. As mudanças do roteiro em relação ao texto original, no que tange personagens e relações (as pessoas que cruzam o caminho de Lorraine são consideravelmente mais jovens e violentas do que nos quadrinhos, por exemplo), acontecem para que a protagonista precise sair no braço com muitos homens para concluir sua missão. Leitch é habilidoso ao conduzir as cenas de ação, abusando de planos-sequência – um deles, um embate que começa em um prédio e termina em uma perseguição de carros, é memorável – para estabelecer a mise-en-scène.

A ambientação é uma realidade aumentada da incerteza que pairava sobre Berlim no fim da década de 1980. Desde os primeiros letreiros em cores berrantes que situam o espectador, Leitch e Johnstad criam um universo apenas inspirado na realidade, em que qualquer indivíduo que passa pela tela é um potencial espião. Nesse ponto, o longa se assemelha a John Wick – Um Novo Dia Para Matar (Chad Stahelski, 2017), no qual todo cidadão é também um potencial assassino, colocando o protagonista em estado de constante tensão.

A fim de dar vida a esse universo, o texto se afasta muito da graphic novel em matéria de ritmo. Apesar de o interrogatório ter um ar que ecoa o texto original de Antony Johnston, todo o resto se desenvolve de maneira quase frenética, da forma que Broughton conhece alguém e descobre rapidamente que essa pessoa é um agente duplo. Assim, valorizando a ação em uma narrativa mais veloz, Atômica se aproxima de Kick-Ass (2010) e Kingsman – Serviço Secreto (2014), quadrinhos escritos por Mark Millar cujas adaptações para o cinema foram dirigidas por Matthew Vaughn.

Infelizmente, esse ritmo diferente nas duas linhas temporais compromete o resultado. A trama sempre se torna enfadonha quando o flashback é interrompido para enfocar a protagonista respondendo às perguntas de seus superiores, o que se torna um percalço ainda maior devido à quantidade excessiva desses momentos, e de como eles são montados de forma a acontecerem por vezes logo após sequências de ação. São quebras de andamento que fazem o filme correr riscos constantes de perder a atenção de seu espectador, além de esticarem a duração de um longa que funcionaria muito melhor com 10 minutos a menos.

Outro problema grave, o maior deles, está no desenvolvimento da personagem principal. Atômica possui uma protagonista claramente forte. É um filme determinado a pintar sua heroína como uma personagem poderosa, e encontra em Charlize Theron a intérprete perfeita para isso, mas jamais consegue fugir da armadilha de reduzi-la à objetificação. É claro o esforço de Leitch e Johnston para promoverem as capacidades de Lorraine, mas constantemente o máximo que eles conseguem é um empoderamento fetichizado, não só no retrato do relacionamento da personagem com a agente francesa vivida por Sofia Boutella, mas como o corpo de Theron é filmado o tempo todo de maneira sexualizada.

A erotização das personagens femininas faz com que o longa em alguns momentos lembre Sucker Punch: Mundo Surreal (Zack Snyder, 2011), enquanto peça que trata a figura feminina como alimento para fantasias masculinas, e prejudica seriamente uma obra que, mais na ação do que no desenvolvimento de sua trama, é até eficiente. Talvez com uma mulher na direção, Atômica poderia se encerrar como um passatempo irresistível (Mulher-Maravilha, de Patty Jenkins, é o exemplo mais claro em 2017). Do jeito que ficou, é uma experiência das mais decepcionantes da temporada.

Atomic Blonde, David Leitch, 2017 

2 comments:

Unknown said...

As cenas de ação são muito boas mesmo e a Charlize Theron ficou mara no papel da Lorraine.
Ótimo texto!

João said...

Excelente texto

As cenas de ação sao otimas.

Ja o filme, achei um saco.
"Vamos botar theron quase nua falando sussurrando e transando com outra mulher". Isso vai agradar aos homens pelo menos